“Tenho pena dos mais velhos que vivem em solidão, que não têm ninguém a quem pedir ajuda e ninguém se lembra deles”

Se não soubesse a idade que tem, diria que estava na casa dos trinta. Bebe uma média de vinte cafés por dia e prefere andar com os pés descalços do que com qualquer sapato do mundo. Alice Vieira tem 77 anos e uma alma jovem, ressentida com a pandemia por, entre outras coisas, lhe ter…

Se não soubesse a idade que tem, diria que estava na casa dos trinta. Bebe uma média de vinte cafés por dia e prefere andar com os pés descalços do que com qualquer sapato do mundo. Alice Vieira tem 77 anos e uma alma jovem, ressentida com a pandemia por, entre outras coisas, lhe ter retirado a oportunidade de beber gins pelos bares da Ericeira. Ao seu lado, Nélson Mateus, o jornalista com quem tem uma relação de avó-neto. É exatamente sobre essa relação que são os projetos que têm pensados para o futuro próximo. As relações entre avós e netos, o que uns podem aprender com os outros e como a sociedade trata os seus, “nossos”, avós. A dupla está a escrever dois livros: um com entrevistas a algumas personalidades, entre as quais Marcelo Rebelo de Sousa, Simone de Oliveira, Ruy de Carvalho, Anjos e Henrique Feist, com as quais pretendem reunir testemunhos sobre a ligação entre avós e netos e sensibilizar a população para a luta contra a solidão e o abandono dos mais velhos; o segundo livro será uma espécie de “Diário entre avós e netos”. Vão ser criadas personagens que trocarão e-mails diários e, através deles, relembrar-se-à a História de Portugal. Recebem-nos na Ericeira, a sua casa do coração.

O que tem de tão especial a Ericeira?

Alice Vieira: As praias, as pessoas e a comidinha. É uma terra que está sempre cheia de gente nova, é a primeira reserva europeia de surf e a segunda mundial. Ainda esta manhã estava cheio de gente a fazer surf. É realmente um sítio muito acolhedor. Quando eu voltei de Paris, nos anos 60, não encontrei casa em Lisboa e vim para aqui. E já quando era miúda vinha para aqui com os meus tios, portanto, tenho uma grande ligação a esta terra. A vila está bem preservada, gosto muito de estar aqui. A minha filha costuma dizer que eu ponho o pé na Ericeira e fico logo outra. Não sei o que é, mas sempre fui assim. 

Nélson Mateus: A Alice, ao viver em Lisboa, sendo jornalista e escrevendo crónicas é uma esponja de tudo o que ouve. Mas nem sempre tem tempo de “espremer” essa esponja. Mas, quando chega aqui, a paz que vive dá-lhe a possibilidade de refletir sobre o tudo o que ficou na sua memória, que viveu em Lisboa, e aqui acaba por desligar.

Que inspiração lhe dá o mar que a terra não lhe dá?

AV: Como jornalista que sou, o mar dá-me uma grande calma. A inspiração vem mais da terra, dá-me aquilo que oiço e aquilo que eu vejo, e que pode passar despercebido a outra pessoa normal (nós não somos normais, não é?). Eu vivo mal longe de água. Eu preciso de água, mesmo em Lisboa vou muitas vezes para ao pé do rio. Tudo o que tenha água eu gosto. Quando vivia em Paris, estava ali ao pé do Sena, aquilo era uma maravilha. Muita terra descontrola-me. O mar tem sempre feito parte da minha vida e dá-me essa calma que às vezes é necessária para repousarmos um bocadinho.

NM: Eu e a Alice falamos muito sobre o silêncio. Para nós, ele é perturbador e ensurdecedor.

AV: Eu trabalho bem com barulho, isso é muito citadino e urbano, mas para mim o barulho é muito inspirador. Às vezes eu estou em casa, oiço alguém falar cá fora e inspiro-me. Já me aconteceu isso. Eu tinha um texto para enviar e abri a janela e cá fora estava um fulano, eram umas duas da manhã e acho que ele tinha acabado o namoro com a Maria Bárbara. Então eu fiz um textinho sobre isso e no final pedi ao senhor: “Da próxima vez que se separar, não se separe a esta hora”. Eu vivo muito do que oiço. Invento pouco. Claro que às vezes dou voltas às coisas mas o tema em si ou fui que ouvi ou que sei.

Excluindo a Ericeira, que sítio lhe dá mais paz?

AV: Eu preciso de paz com água, se não era muito infeliz. Tinha de ir para ao pé do rio. Se não pudesse escolher a Ericeira, acho que seria Lisboa à beira Tejo, onde ainda vou muitas vezes.

Sente-se, portanto, em paz por dentro quando há agitação por fora?

AV: Sim, acho que é isso mesmo, sinto-me em paz por dentro quando há agitação por fora. Porque é uma paz interior. Por fora tenho de ter sempre uma certa agitação e foi sempre assim. Quando eu trabalhava no Diário de Notícias estava numa sala sem janelas. E eu sentia-me sempre melhor quando ia escrever para uma sala com janelas, viradas para a Avenida da Liberdade. Preciso muito de ter acesso à vida cá por fora.

É fácil envelhecer em Portugal?

AV: No geral, eu acho que o país não está feito para acudir aos mais velhos, quando uma pessoa chega aos 60 ou 70 anos está velho, não presta para nada, e isso é mau. Eu trabalhei numa terra na Argentina, a província chamava-se El Chaco e a capital era Resistência, e era a província mais miserável do país, basta dizer que a capital só tinha uma rua alcatroada. Há lá um escritor que se chama Mempo Giardinelli e ele tem uma fundação que faz um trabalho extraordinário com avós e netos. Ele leva os avós e os netos, mesmo que não sejam familiares de sangue, a ensinar coisas uns aos outros. Os avós contam as histórias da Argentina, e os netos ensinavam sobre a internet e os computadores, por exemplo. No final do ano há sempre um prémio para a melhor avó e para o melhor neto. Aquilo é muito engraçado e foi por isso que eu lá estive a trabalhar. Era bom que se fizesse alguma coisa do género cá. Mas aqui o que se faz com os idosos? Temos de ver o que é que os mais velhos podem dar que os mais novos não podem e não os fazer sentirem-se inúteis. Isso é o pior, é a pessoa sentir que já não tem nada para fazer e está ali sentada a um canto à espera que morra. Isso ainda é o que a maioria das pessoas deste país pensa dos mais velhos.

Sente então que a sabedoria dos idosos está a ser desperdiçada?

AV: Sim, claro que está. Ainda ontem vi nas redes sociais uma publicação a dizer “Veja se se lembra disto”. E eram coisas de que os mais velhos se lembram, mas o resto das pessoas já não. Outra coisa que eu acho muito importante é o conhecimento sobre a política antes do 25 de Abril. E os mais novos não têm noção disso. Eu lembro que quando o Mário Soares morreu um jornal foi fazer uma entrevista a quem estava a sair da faculdade e a esmagadora maioria dizia “Ah não sei, acho que era um velhote da política” e o senhor tinha acabado de morrer. As pessoas não têm ontem. Isso era uma coisa que os mais velhos deviam partilhar com os mais novos.

NM: Foi mesmo para explicar isso à população que estamos a criar estes livros, que contam histórias de avós e de netos. É através dos avós que nós podemos contar a História de Portugal. Nós queremos provar que Portugal, além de ser um país adequado para os mais velhos, é também um país para avós e netos. O que falta é a comunicação, as gerações têm de comunicar umas com as outras. Antigamente, toda a gente tinha tempo para tudo e hoje parece que não há tempo para nada. Mas o tempo é o mesmo. E hoje existem as bimbys da vida e as redes sociais e as pessoas não têm tempo para nada. Nós há uns anos queríamos saber uma receita e ligávamos à nossa avó, queríamos saber como é que a roupa ficava mais branca e ligávamos à nossa avó e hoje vamos ao Google. Mas aquela avó continua a existir. O Google pode dizer-nos muita coisa, mas as avós dizem muito mais. O que se sente muito é que, agora, os miúdos estão em casa dos avós, mas não estão verdadeiramente com eles.

AV: Ainda anteontem estava com umas dores nas costas e liguei a uma tia minha com 96 anos e disse-lhe que tinha de ir à farmácia. E ela disse-me assim: “Ir à farmácia? Mete vinagre de sidra e isso passa”. E não é que passou mesmo? Foi ótimo! E esta sabedoria popular só vem dos mais velhos.   Aquilo de que eu tenho muitas vezes pena é dos mais velhos, idosos mesmo, que vivem na solidão, não têm ninguém a quem pedir ajuda e ninguém se lembra deles. Eu agora durante o confinamento aprendi a fazer, porque o Nélson me ensinou, chamadas por Zoom e por Skype. Aí está uma prova de que os novos podem ensinar aos velhos.

NM: Uma vez por semana eu ia a casa da Alice ver se estava tudo bem e se ela precisava de alguma coisa. Houve um dia que a sentei em frente ao Facebook – porque ela é viciada em Facebook – e disse: “Oh Alice, já reparou que aqui em cima, ao lado do auscultador tem uma câmara?”. Pedi-lhe para carregar em cima do ícone e foi assim que ela fez a sua primeira videochamada pelo Messenger. Naquele mesma noite, ela ligou-me a dizer que já tinha falado com um monte de pessoas. É exatamente isto que os netos podem fazer com os avós. Nós hoje temos livros, temos computadores, temos Netflix, temos 200 canais de televisão e as pessoas queixam-se que não há nada. Ainda agora à hora de almoço estávamos a falar de que quando houve a primeira novela brasileira, a “Gabriela cravo e canela”, até o Parlamento fechou mais cedo para os deputados irem ver o último episódio da novela. Hoje é impensável essas coisas acontecerem. Isto não foi há muitos anos, foi ontem. Eu lembro-me de ir com a minha avó às compras e ela tinha um saco de rede onde vinham as frutas todas juntas e nenhuma se chateava. Nós hoje vamos buscar duas peças de fruta com um saco, mais outras duas com outro, chegamos a casa e temos 200 sacos com uma única utilização. Obviamente que estamos a dar cabo do ambiente.

Os avós têm tanto para aprender com os netos como os netos têm com os avós?

AV: Sim, têm. No meu caso, por exemplo, tudo o que diz respeito a novas tecnologias, especialmente porque eu sou uma naba nisso. Se formos falar com pessoas mais velhas e ensinar-lhes, isso traz uma grande proximidade. Uma pessoa que está sozinha e não tem ninguém, se lhe ensinarem a manejar o computador e o Facebook, ela tem logo ali pessoas com quem conversar. Porque, mesmo que virtualmente, as pessoas sabem que os outros estão ali.

NM: Podem ter uma solidão povoada e não tão isolada. Aqui é engraçado, porque a Alice – e neste momento estamos a falar em nomes, mas tem de acontecer também com as pessoas no geral –, regra geral, não faz resistência a nada. Adora coisas novas, é como a Coca-Cola: estranha-se e depois entranha-se. A princípio diz “Deixa estar, fica para amanhã”, mas quando dá por isso já está a tentar. Foi isso que aconteceu com as videochamadas: primeiro experimentou o Messenger, depois o Skype, depois pediram-lhe para fazer uma chamada por Zoom para a escola e lá lhe ensinei. Passado uma semana estou a ver televisão e o que é que vejo? A Alice em direto numa chamada por Zoom. Eu acho que é isto que as pessoas, avós e netos, têm de ter em atenção: eu dou à Alice as ferramentas, ensino-a e ela depois vai fazer sozinha. Para nós, a sabedoria pode não estar a ser falada nas conversas, mas está presente a tempo inteiro. E quando eu saio de casa da Alice, que é nas Avenidas Novas, e vou até ao Politeama, ela, mesmo sem querer, dá-me uma lição de História. Ela dá-me uma formação de uma forma muito ligeira, enquanto quando é uma coisa por obrigação as pessoas ficam sem vontade de aprender, o que não é o caso. E mesmo eu, quando vejo uma série na Netflix que acho que a Alice vai gostar, digo-lhe para ir ver. E isto é uma coisa que eu adoro na Alice, é que ela não diz que não a nada.

Quando somos empregados estamos sempre a dizer que não temos tempo para nada. Quando chegamos à reforma passa a haver demasiado tempo?

AV: Eu reformei-me há três anos e mesmo assim tenho sempre muito trabalho, acho que é bom. Uma frase que eu digo muito é: “Quem tem muito que fazer tem sempre tempo para tudo, quem não tem nada que fazer é que nunca tem tempo para nada”.

NM: Muitas pessoas reformam-se e ficam em casa em frente à televisão à espera que a morte chegue. E a morte é daquelas coisas pelas quais nós não precisamos de esperar, porque é a única coisa na vida que nós temos garantido. O tempo é aquilo que nós queremos fazer dele. A Alice diz muitas vezes, com muita graça, que não é uma avó a dias. E há muitas avós que, depois de se reformarem, ficam escravas dos filhos e dos netos. Vão buscar a criança à escola, dão-lhe almoço e acabam por ter uma rotina quase semelhante ou ainda mais rígida do que aquilo que tinham antes. Nos lares e nos centros de dia, felizmente, existem cada vez mais atividades para os idosos. Mas eu ficava super chateado com aquela coisa de levar um idoso para um centro de dia e pô-lo a cortar folhas de papel e aquilo não servir para nada. Os idosos têm de ser valorizados e não infantilizados, porque são pessoas úteis para fazer montes de coisas: são úteis para fazer voluntariado, contar histórias a outras pessoas e isto fá-los sentir necessários.

AV: Há um senhor aqui na Ericeira que eu conheço e andava nas camionetas que faziam Mafra-Lisboa. Mas ele nem sequer guiava, ele só picava os bilhetes. O que aconteceu? Ele reformou-se e dizia muitas vezes: “A única coisa que eu sei fazer na minha vida é picar bilhetes. O que é que eu faço agora?”. E ele teve aí um tempo que andava doido. Agora arranjou trabalho, é porteiro de noite. Fala com as pessoas, conhece gente nova, tem um trabalho, está ótimo.

Os idosos têm cada vez mais vontade de ser ativos ou são cada vez mais sedentários?

NM: Eu acho que cada vez têm mais vontade de ser ativos, mas estes idosos têm de ser estimulados. Mas o país não é apenas Lisboa e Porto. Existe um grande gap entre quem vive nas grandes cidades e quem vive em cidades mais pequenas. E isto fez com que existissem dois países completamente diferentes e que, apesar de isto estar a melhorar, ainda se consegue ver. Temos de analisar as coisas como um todo e não só como Lisboa e Porto.

AV: Mas às vezes, no interior, eu penso que os velhos têm mais capacidade de trabalhar e de estar com os outros e de autoajuda e têm o seu quintal e vão plantando umas coisas.

NM: Se estivermos a falar das aldeias é muito difícil aquela senhora não sair de casa e a vizinha do lado não dar por isso. Enquanto nas grandes cidades podem passar três semanas e ninguém sabe nada do vizinho do lado. Nós, que vivemos em Lisboa, é muito comum que as pessoas do mesmo prédio não se conheçam nem digam bom dia nem boa tarde se se cruzarem na escada ou no elevador. Até faz lembrar aquelas coisas dos filmes americanos, que rapidamente pode vir acontecer cá, em que alguém tem uma apoplexia no meio da rua, fica ali a espernear e ninguém repara porque estão tão metidos nas suas vidas e com tanta pressa.

Acham que o processo de reforma deveria ser uma coisa mais flexível e adaptada a cada pessoa?

AV: Sim, eu ainda não estaria reformada a esta hora, mas sim. A partir de uma certa idade a pessoa podia querer reformar-se, mas não tornar isso obrigatório.

NM: A Alice hoje em dia até podia ter umas ajudas de custo ou fosse o que fosse, mas deveria ser aproveitada para estar num jornal. De certeza que qualquer jornalista mais jovem teria muito a aprender com a Alice e a Alice iria aprender muito com um jornalista mais jovem. Eu acho fantástico o Júlio Isidro ter a idade que tem e estar na televisão, não devia era estar só na RTP Memória. Eu conseguiria ver um programa entre o Júlio Isidro e a Tânia Ribas de Oliveira, por exemplo. São pessoas de gerações diferentes, mas que se poderiam facilmente complementar. Uma das coisas mais bonitas que eu vi até hoje foi a Simone de Oliveira a fazer um dueto com a Mariza Liz dos Amor Eletro e com a Aurea. Ambas a tratam por avó.

AV: Eu digo que sou uma pessoa privilegiada e acho que sou, porque eu não dependo de ninguém e ninguém depende de mim. Eu não tenho obrigatoriamente de dar nada aos meus filhos ou aos meus netos. Obviamente que o que quero eu dou, mas nenhum deles depende de mim. E eu também não dependo deles. Vou para onde eu quero, quando quero e gosto assim. As pessoas que dependem dos filhos e dos netos vivem num horror.

Sentem que as pessoas, quando chegam a uma determinada idade, deixam de ter prazer em fazer certas coisas que antes lhes davam prazer?

AV: Se calhar sim, mas aprendemos a ter prazer noutras. Eu continuo a fazer as mesmas coisas, mas aprendi a ter prazer com outras coisas diferentes, com as novas tecnologias e cozinhar por exemplo. Quando era nova não gostava nada de cozinhar. São coisas que se vão descobrindo depois, estamos mais calmos e temos mais tempo para as coisas.

NM: Eu acho que há coisas que nos davam prazer a fazer e continuam a dar, mas temos mais dificuldade em fazê-las. A Alice chegava a ir para o ginásio todos os dias e agora já não. Descobre-se coisas que podem vir a dar mais prazer. Ouvir um CD, por exemplo, com tempo para o ouvir é completamente diferente de o ouvir enquanto estamos a fazer coisas.

AV: Há coisas que eu dantes não tinha tempo para fazer e que aprendi a tirar prazer disso agora que tenho tempo. Por exemplo, estar no café a conversar com os meus amigos. Eu dou-me muito bem comigo e gosto muito de estar sozinha, mas como dizia a Melina Mercouri: “Eu gosto muito de estar sozinha sabendo que há pessoas do outro lado da porta”. E eu sinto-me assim também.

NM: Não vale dizermos à Alice para acalmar porque nós comentamos muitas vezes que o nosso verbo é o verbo “ir”, estamos sempre a ir a algum lado. Acalmar não existe.

AV: Mas, por exemplo, eu já fui a Timor e gosto muito. Há pouco tempo tive um convite para voltar, mas agora já não vou a Timor. Já não aguento 30 horas de avião. E quando vou ao banco, por exemplo, dizem “Vamos lá por isso a cinco anos”. E eu digo que não, para pormos só a dois. Essa é a única altura em que eu penso que se calhar daqui a cinco anos já cá não estou.

 

Quais são os seus truques para envelhecer com genica?

AV: Eu sempre fui assim, não foi nada que me tivesse acontecido. Fui criada com os meus pais e acho que o meu pai era muito enérgico, morreu com 90 e tal anos e foi porque deixou de respirar. Eu herdei esse lado dele. Eu ando depressa, eu faço 500 coisas e acho que me está nos genes. É engraçado porque isto não estava nos genes dos meus dois outros irmãos. Não me consigo ver de outra maneira, muito parada a descansar. Posso estar sentada, mas estou sempre a fazer qualquer coisa. E se há muita coisa para fazer eu quero fazer. Não faço nada para isso, também não tomo vitaminas para isso.

E quais são os maiores prazeres que não sejam profissionais?

AV: Estar aqui sentada a olhar para o mar e estar no café com os amigos. Também tenho uma coisa que gosto muito de fazer que é uma organização que se chama “Post Crossing”. O Post Crossing foi criado por dois portugueses que estão na Holanda. Falamos com pessoas do mundo inteiro, explicamos o que se passa aqui, eles fazem o mesmo e ficamos a conhecer meio mundo. É uma coisa muito engraçada e que me dá grande prazer. Ainda há dias, o marido de uma das minhas amigas do Post Crossing que vive na Alemanha escreveu-me a dizer que ela já não estava muito bem e tinha morrido mas que ele queria escrever-me a dar a notícia porque nos últimos tempos as únicas coisas que lhe davam prazer eram os postais que eu lhe mandava. E eu gosto muito de fazer isto. A comunicação por e-mail é útil, mas não é tão pessoal como mandarmos uma carta, um postal ou qualquer coisa que escrevemos à mão. É muito mais rápida e há pessoas a quem eu nunca pensaria em escrever um postal, mas isto é uma coisa que gosto realmente muito de fazer. Palavras cruzadas também gosto muito.

NM: A Alice Vieira é tão popular aqui na Ericeira e nos correios que já nem é preciso escrever a morada dela. Basta escrever o nome que a carta vai-lhe parar às mãos.

AV: Mas é preciso dizer onde é que a carta vai parar.

NM: Isso já não vou ser eu a dar com a língua nos dentes.

AV: Escrevem Alice Vieira – Ericeira. E onde é que o carteiro vai por a carta? Num bar onde eu costumo ir. E a Olga lá do bar liga para mim e diz “Tens aqui duas cartas”. Porque ele manda para lá e diz “Eu sei que ela está sempre aí caída de maneira que ela depois vai aí buscar”. E aqui sabem sempre onde é que eu estou, o que eu estou a fazer, não dá para passar despercebida.

A relação que teve com os seus avós influenciou a que teve com os seus netos?

AV: Eu não tive avós. Só a avó Gertrudes que morreu quando eu era pequena. Não tive essa relação com os meus avós, mas inventei-a. O professor João dos Santos dizia sempre: “Uma criança não pode viver sem ter uma aldeia e sem ter uma avó e se não os tem, tem de os inventar”.

Eu fiz de minha avó uma prima minha muito afastada. Era jornalista, diretora de uma revista. E ela foi a avó que eu não tive. Eu contava-lhe tudo, ela impediu-me de fazer muitas asneiras. Ela foi muito importante para mim. Relativamente aos meus netos, eu nunca fui avó a dias. Os meus netos viveram sempre fora. E eu lembro me de uma vez estar em Leicester e havia lá uma grande livraria que era a Waterstones. Um dia entrei lá e estava lá um grande cartaz que dizia “As três regras da boa avó: Dar-lhes amor; dar-lhes doces; mandá-los para casa” e eu pensei “É mesmo isto!”. Quando o meu filho voltou para Portugal com os miúdos ele disse-me: “Agora a tua prioridade vão ser as crianças”, e eu disse: “O quê? Quando eu puder estar com eles estou”. E quando eu estava com eles, estava mesmo, não fazia mais nada. Levava-os a fazer imensas coisas, a conhecer sítios e por isso temos uma relação tão boa hoje. Eu estava mesmo com eles, não era nenhum ATL para eles fazerem os trabalhos. Era para nos divertirmos e fazermos coisas malucas. Fazíamos coisas tão malucas que às vezes a minha neta mais nova olhava para mim e dizia: “Ai avó, tu és tão estranha”. Isso foi porque uma vez, na altura do Natal, fomos a um mercado e eu disse: “Vamos comprar o pai natal mais feio que lá estiver”. E era sempre assim, quando estava com eles, não estava com mais ninguém.

De que maneira a presença dos avós pode influenciar ou moldar o crescimento de uma criança?

AV: Bem, todos os meus netos estão em cursos de Ciências, por isso eu sei que não os moldei para irem para Letras. Mas todos eles escrevem muito bem e gostam muito de ler. Eu nunca os tentei moldar, mas acredito que tem que ver com o exemplo. Se eles estão numa casa onde ninguém lê é difícil dizer-lhes: “Olha, devias ler este livro”. O meu neto uma vez estava a ler um livro lá em casa, era um livro horrível, mas muito bem escrito, O Querubim, de Robert Muchamore, mas não lhe ia dizer para não ler porque se não era pior. Então ele chegou ao fim do livro e eu disse: “Pedro, eu li esse livro e também gostei muito, vamos conversar um bocadinho!” e foi ótimo. O que eu comecei a fazer? Sempre que saía um livro do Robert Muchamore eu dava-lhe. Chegou um dia que ele veio ter comigo e disse: “Avó, eu agora gosto mais do Fernando Namora”.

Sentem que a geração que está a crescer no século XXI tem tanto interesse em cultura geral e no que se passa à sua volta como a que cresceu no século passado?

AV: Se não tiver a gente dá-lhe uma tareia e eles passam a ter… estou a brincar, obviamente. Isso tem muito que ver com a família. Se pegarmos novamente no exemplo do Mário Soares, as pessoas que estão à volta é que têm o papel de explicar o que se passa. Eu cheguei a perguntar por que razão os miúdos não sabem este tipo de coisas e a resposta era: “Nós não falamos de política em casa”. Mas tudo é falar de política, portanto, as pessoas têm de falar.

NM: Eu não sou contra nada o que passa na televisão, mas as pessoas podem escolher ver só os reality shows ou a ver a vida para além daquilo. Quando a conversa de café é só a novela e só o reality show, eu acho que isso é muito pobre. Mesmo que não faça parte da cultura de hoje, eu devo ter curiosidade e querer ir procurar mais. Hoje temos tantas ferramentas, sem gastar dinheiro podemos descobrir montes de coisas e querer saber mais sobre o nosso ADN e não há essa vontade muitas vezes, acho que não nos devemos ficar pelo “nem quero saber”.

E esta geração está muito cheia desse “não quero saber”?

N e A: Sim.

NM: Está cheia de “não quero saber”, cheia de futilidades.

AV: E conseguimos ver isso quando alguém diz uma coisa disparatada, outra pessoa corrige e a resposta é “não quero saber, isso já não é do meu tempo”. Pois, o Afonso Henriques também não é do meu tempo e eu quis ir saber.

NM: Para vermos como as coisas passam rápido, faz-me confusão miúdos que dizem “Eu já não tenho Facebook porque Facebook é uma coisa dos avós. Eu sou viciado no Instagram”. Estamos aqui três gerações completamente diferentes. A Alice diz que nunca se imaginou a ler um jornal sem ser em papel, eu já não acho que seja assim tão necessário (o papel). Quando eu pego num jornal, aquilo tem muito conteúdo que pode não me interessar. Na internet, eu consigo escolher aquilo que quero ler, mesmo que sejam notícias cor-de-rosa. Eu com um scroll, só com uma frase consigo saber o que se passa em todo o lado. Se calhar os jornais diários podem vir a deixar de existir, mas o que não pode deixar de acontecer é as pessoas deixarem de querer estar informadas. Não pode deixar de existir informação nem vontade de a pessoa estar informada. As pessoas têm de se interrogar sobre o que se passa. Por que razão quando vamos votar existem quase 20 espaços para pôr uma cruz, mas nós só ouvimos falar de quatro ou cinco partidos? Tanta gente reclamou quando o Cavaco Silva foi Presidente, mas até parece que o senhor não chegou lá por eleição. Eu não votei nele, mas alguém votou. E se houve muita gente que não votou, aí o problema já é outro.

AV: Isso é uma coisa que nós temos de incutir aos mais novos, que eles têm de ir votar. Se não quiserem votar em ninguém, chegem lá e votem em branco, mas vão às urnas.    

NM: Temos de incutir aos mais novos a cidadania, não existe nada mais importante que a nossa cidadania, ajudar o próximo.

AV: Antes do 25 de Abril, lá em nossa casa, ia lá imensa gente passar uma noite para depois partir para outro país. Os meus filhos na altura eram pequeninos, mas já tinham noção das coisas. Eu lembro-me que eles acordavam e perguntavam: “Mãe, há hospedes?”, e, se eu dissesse que sim, já sabiam que não podiam abrir a boca para dizer que aquele estava lá.

NM: Há uma frase que compara os portugueses aos alemães que diz: “Uma alemã está a janela e vê um homem chegar com um carro novo e diz para o marido ‘temos de trabalhar mais para conseguirmos um carro daqueles’. Quando a portuguesa está a janela e vê o homem chegar com um carro novo diz ao marido ‘dá-me aí uma faca para ir lá abaixo riscar o carro’”. E isto diz muito sobre o nosso ADN e como não nos preocupamos em evoluir, mas sim em ver o que os outros têm a mais. Como dizia a minha avó, “acho isso tão poucachinho”.

A Alice diz que escreve para si mas a maioria dos seus livros…

AV: Quando eu digo que escrevo para mim, o que quero dizer é que não dou voltas ao que escrevo para ficar adequado aos mais pequenos. Mas também digo sempre que eu não escrevo para muito pequenos, escrevo para miúdos a partir do quinto ou sexto ano. E há muitos livros que eu escrevo para jovens e que os adultos também lêem. Nós nunca sabemos quando é que alguém é jovem e quando é que deixa de ser. E é por isso que eu digo que eu escrevo para mim, porque tenho de gostar daquilo que estou a fazer. Eu sou muito rigorosa e às vezes, depois de escrever um livro, penso: “Não está mau, mas eu podia fazer melhor”, e depois deito tudo fora. Quando entrego um livro para publicar tenho de ter a certeza de que não sou capaz de fazer melhor.

Qual é a faixa etária mais difícil de cativar?

AV: São todas, mas os adultos são os piores.

Já falamos sobre o facto de a realidade andar muito mais depressa agora. A Alice continua a conseguir estar a par de tudo?

AV: Tudo acaba muito depressa. No outro dia estava a ver um programa com o Vasco Palmeirim em que estavam a falar sobre um produto tecnológico. Esse produto já não existe e eu nem cheguei a ter conhecimento dele. Eu acho o máximo entrar numa sala e aquilo ter um sensor que acende a luz. Não me posso é esquecer de que as minhas avós tinham um candeeiro a petróleo. E ainda bem que chegamos aqui e não ficamos lá atrás. Mas se hoje estamos aqui é porque os nossos antepassados fizeram por isso.