Trump contra Trump: umas eleições com um só candidato

Antes de analisar brevemente as eleições nos EUA, será interessante verificar como as cobriram os nossos jornalistas e comentadores.

Antes de analisar brevemente as eleições nos EUA, será interessante verificar como as cobriram os nossos jornalistas e comentadores.

Durante meses, ouvi-os dizer que Joe Biden iria ganhar folgadamente.

As suas intervenções, de uma forma geral, eram abertamente favoráveis a Biden e hostis em relação a Trump, numa dualidade de critérios chocante.

Nos debates, quando havia três comentadores, os três eram pro-Biden.

Das dezenas de debates a que assisti antes das eleições, só vi um honesto: foi na RTP- 2 e pôs frente a frente uma professora universitária de que não retive o nome, que se posicionava a favor de Biden mas era correta e moderada, e Jaime Nogueira Pinto, que se declarou favorável a Trump mas se mostrou igualmente moderado e racional. Em nenhum outro debate vi um participante próximo de Trump (ou explicando sequer os seus pontos de vista).

Na véspera das eleições, o editor de política internacional da TVI, chamado a fazer um comentário num telejornal, afirmou que havia 99% de probabilidades de Biden ganhar.

Os correspondentes estrangeiros dos vários canais de TV, com destaque para Costa Ribas, transformavam aquilo que deviam ser comentários jornalísticos em intervenções políticas, como se estivessem a falar num comício do Partido Democrata.

No Google, todos os dias a abrir as notícias vinha um ‘escândalo’ qualquer que implicava Trump.

Os adeptos de Trump eram designados por ‘trumpistas’ e todos catalogados como de ‘extrema-direita’. A extrema-esquerda, a esquerda, o centro e a direita moderada, segundo os comentadores, estavam todas com Biden.

Os jornalistas deitavam às urtigas a deontologia e misturavam informação com opinião. Alguns diziam privadamente que tudo o que fosse feito para derrotar Trump, mesmo o uso de meios desonestos, era legítimo. Dos jornalistas que intervieram nesta campanha, apenas vi um que se comportou como tal: Ricardo Costa, honra lhe seja, que procurou quase sempre ser objetivo e imparcial.

Nenhum jornal diário português, nem sequer o Correio da Manhã, geralmente apolítico, ou o i, escapou ao alinhamento por Biden e sobretudo contra Trump.

João Miguel Tavares, colunista que já elogiei, proclamava infantilmente na véspera das eleições que era «o último dia de Trump na Casa Branca».

Perante tudo isto, pergunto: o que se passou?

Como foi possível os comentadores e os jornalistas serem tão pouco imparciais?

E como se revelaram tão incompetentes ou desonestos, a ponto de as suas análises não corresponderem minimamente ao que viria a acontecer?

Como se mostraram tão incapazes de antecipar os acontecimentos?

Como poderemos acreditar neles no futuro?

Dir-se-á que tinham direito a exprimir a sua opinião.

O argumento não colhe.

Às pessoas não interessava nada saber o que o jornalista A, ou o comentador B, ou o Joaquim dos Anzóis ou o Zé da Esquina pensavam sobre Trump ou sobre a América: interessava, isso sim, que dessem uma imagem correta, aproximada, do que se passava na América e de qual era o estado de espírito da população, prevendo o que iria passar-se nas eleições.

Era isto que interessava aos leitores e aos telespetadores.

Ora, aí, eles falharam estrepitosamente.

E enganaram os que lhes deram ouvidos.

A vitória esmagadora de Biden não se verificou, a ‘onda azul’ que anteciparam falhou, os republicanos conservaram o Senado e recuperaram posições na Câmara dos Representantes, Trump ganhou claramente nas urnas e só perdeu por causa dos votos por correspondência, cuja autenticidade é dificilmente controlável.

Em sua defesa, os jornalistas e os comentadores invocarão ainda que foram enganados pelas sondagens.

Mas não tinham cabeça para pensar?

Se só os resultados das sondagens importavam, não eram precisos comentadores: bastava um amanuense que lesse os números.

Confesso que nunca acreditei muito nas sondagens.

Por várias razões, a saber:

Primeira: Trump era o Presidente em exercício, e isso tem muito peso.

Segunda: Trump projetava uma imagem muitíssimo mais forte do que o adversário e patenteava uma energia muito superior – e os povos gostam de líderes fortes e não de homens fracos. A verdade é que Biden transmitia uma imagem de grande debilidade física e cometia gafes confrangedoras.

Terceira: os resultados das sondagens eram provavelmente inquinados pelo facto de muitas pessoas não quererem dizer que votariam Trump – com receio de serem consideradas ignorantes ou estúpidas. Assim, Trump apareceria sempre subavaliado nas sondagens.

Quarta: na hora da verdade, muitos eleitores inclinar-se-iam para o lado mais seguro. Na cabina de voto, Trump teria clara vantagem.

Quinta: se a pandemia prejudicou o atual Presidente, paradoxalmente também chamou muito a atenção para a necessidade de recuperar a economia – e aí Trump estava muito melhor colocado do que Biden. Não se sabe se, com Biden, os resultados sanitários teriam sido muito melhores; mas sabe-se que os resultados económicos seriam muito piores. Note-se que a economia americana já está a crescer e o emprego a recuperar.

Sexta: os comícios de Trump eram vibrantes, tinham muita gente, tinham entusiasmo, enquanto os de Biden pareciam velórios num cemitério. É claro que havia a questão da covid e o perigo de contágio, mas não se podem fazer campanhas eleitorais com medo – e Biden parecia cheio de medo.

Todos estes sinais apontavam num sentido – e os nossos comentadores não os souberam (ou quiseram) ler.

É certo que, noutro plano, Trump tinha tudo contra ele.

Aliás, as eleições foram Trump contra Trump – pois Biden, por todas as razões apontadas, não contou.

Os americanos votavam a favor ou contra Trump – e não a favor de Biden.

Trump tinha contra ele os bem-pensantes, a esmagadora maioria dos comentadores, os defensores do establishment, a alta finança, a CNN, a NBC, a CBS, o The Washington Post, o The New York Times…

Este, outrora um jornal de referência, perdeu-se completamente. Hoje é um jornal partidário, enfeudado a uma fação, e só não digo um ‘pasquim’ por respeito para com a sua notável história. O jornal perdeu a virgindade – e quando a virgindade se perde nunca mais se recupera. Quando Trump foi internado com covid, o New York Times publicou uma notícia segundo a qual os médicos da Casa Branca estavam a mentir sobre o estado de saúde do Presidente, que se encontraria em situação crítica. Além disso, contra todas as regras da deontologia, guardou na gaveta o escândalo dos impostos para o publicar em período eleitoral.

Como se isto não bastasse, em plena campanha aconteceu o caso Floyd, indignando o mundo e comprometendo o Presidente, acusado de racismo.

Em cima de Trump caiu ainda a pandemia, que provocou como se sabe mais de 200 mil mortos – que os democratas atiraram à cara de Trump. E a escassas semanas das eleições ele próprio viu-se atacado pela doença.

Houve colaboradores seus que se demitiram neste período, advogados que o atraiçoaram, familiares que o diabolizaram.

O Partido Democrata, ao contrário do que era tradição na América, nunca aceitou a derrota em 2016 e passou os quatro anos seguintes a tentar ‘deslegitimar’ Trump: foi a acusação de interferência da Rússia nas eleições, foi a tentativa de impeachment por causa da Ucrânia, foram as acusações de racismo, num massacre público permanente.

Independentemente do que pensemos de Trump, é preciso ter muita força, muita energia, muita vontade interior para resistir como ele resistiu em circunstâncias tão adversas.

É óbvio que diz muitos disparates, diz evidentes mentiras, parece muitas vezes um vendedor de feira. Mas como afirmava por estes dias uma professora americana, é preciso olhar mais para o que Trump faz do que para o que ele diz. E, aí, pôs a economia a crescer como nunca, conseguiu alguns feitos importantes na política internacional, não se envolveu em guerras, fez frente à China.

Mas, mais importante talvez do que tudo isso, é o facto de Donald Trump transportar com ele o ‘espírito da América’: ousado, caótico, furiosamente liberal, voluntarista, excessivo, teatral.

Enquanto Biden podia ser um político europeu – e por isso os europeus gostam tanto dele –, Trump só podia ser americano.

Fechados os resultados eleitorais com uma vitória tangencial de Biden obtida nos ‘descontos’, os comentadores irão dizer que os americanos são estúpidos por terem dado tantos votos a Trump.

Que os seus votantes foram os ignorantes, os incultos, os rurais, os menos esclarecidos.

Mas a democracia só existe para os cultos e inteligentes?

Só estes deveriam votar?

E nos centros urbanos concentram-se apenas pessoas ‘esclarecidas’ – ou os subúrbios das grandes cidades são ocupados por muita gente desenraizada, sem referências, que perdeu os valores tradicionais e ainda não teve tempo para absorver outros?

Afinal, esse ‘meio rural’ não será uma reserva de valores que amortece as ondas de choque vindas dos centros urbanos tomados, frequentemente, por uma vertigem perigosa?