A alegria incomparável dos domingos

Entre o Pequeno Polegar e o Conselheiro Gama Torres havia uma grande diferença. Para o primeiro, não havia questões terríveis.

O Conselheiro Gama Torres não só é uma personagem eterna da literatura portuguesa como, hoje em dia, a personagem mais atual da sociedade portuguesa. Se bem se lembram, pelo que nos conta Z. Zagalo em O Conde d’Abranhos, do divino Eça, reduzia-se a uma frase solene, pensativa, vinda das profundezas do seu cérebro caliginoso: «Ele há questões terríveis! Terríveis! A prostituição, o pauperismo, o ultramontanismo». E assim fechava, plenipotenciário de uma sabedoria bacoca, todos os serões, por mais inócuas que fossem as conversas.

Convenhamos: neste arrivismo com laivos fascistas a que estamos entregues, sendo todos nós polícias uns dos outros e obrigados a uma obediência cega ao Grande Irmão que nos vigia, atingimos o ultramontanismo. Da prostituição, nem vale a pena falar, de tal forma abunda agora, por via do distanciamento obrigatório, mais intelectual do que física. O pauperismo é uma inevitabilidade: esta fétida lesma que se espapa à beira-Atlântico sob o nome desacreditado de Portugal, para continuar a citar o mais fundamental e indispensável dos Queirozes, andou décadas a degradar os velhos e está, subitamente, disposta a matar à fome os novos para que os velhos sobrevivam, fechando-nos todos em casa até que a esquina da vida tombe sobre a nossa cabeça como um céu de tempestades.

O ogro da doença invisível é propagado pelos novos Goebbels, que nos descontam na liberdade com o mesmo à-vontade com que nos carregam nos impostos e transformam-nos naquele garotinho, sétimo filho de pobres lenhadores, ao qual Perrault dedicou o conto do Pequeno Polegar. Cada um que defronte o monstro com as armas que tem, mais par de botas menos par de botas. E no intrincado destas ideias que vamos desenvolvendo dia a dia, cada qual com a sua verdade, cada qual com a sua opinião, cada qual mais vítima da omnipotência daqueles que apenas alguns elegeram, o Pequeno Polegar torna-se uma metáfora.

A metáfora, no futebol, teve o nome de Luis Trochillo. Ou melhor: Luizinho. Tinha 1,65 e enfrentava ogros como se fosse do seu tamanho. Ao contrário daquilo que se passa connosco, era impermeável ao medo.

Luizinho era um crente: cria em si próprio tanto como num Deus todo-poderoso inventor do céu e da terra. Filho de espanhóis, Gabriel Luis Trochillo e Margarida Bastarrica, é para muitos a maior vedeta da história do Corinthians, o clube que o foi buscar ao Cachoeira Futebol Clube, fundado pelo seu pai na várzea paulistana, depois de uma passagem breve por outra instituição de nome digno de um romance de Machado de Assis: Clube Atlético Recreativo Maria Zélia.

Luizinho jogou no Corinthians de 1948 a 1962 e, mais tarde, de 1964 a 1967. Diziam que atravessava adversários. Ia direito a eles, com o descaramento divino do Alencar d’Os Maias, e ia por ali fora oferecendo generosamente golos aos seus companheiros de ataque, Cláudio (o Gerente) e Baltazar (o_Cabecinha d’Ouro). A alcunha pegou-se-lhe como pastilha elástica moída em sola de sapato: Pequeno Polegar. O povo enchia o Pacaembu para o ver desfazer-se em fintas e destruir, através delas, a credibilidade dos que procuravam caçá-lo a patadas como se fosse uma ratazana.

Raul Drewnick, um dos grandes cronistas brasileiros, tinha por Luizinho um arrebatamento maior do que o de Dante por Beatriz. E escreveu: «Tive grandes ídolos na infância. Nenhum foi maior que Luizinho, o Pequeno Polegar. Ele era a alegria incomparável dos meus domingos. A paixão que tenho até hoje pelo futebol nasceu dele, dos pés dele, da sua magia. O que Charles Chaplin, o Carlitos, fazia no cinema, Luizinho repetia no Pacaembu. Arte pura, divina molecagem. O que devo a Carlitos jamais conseguirei pagar».

Luis Trochillo era um mãos-largas, distribuindo golos a torto e a direito pelos seus camaradas do Corinthians. Volta e meia dava-lhe um acesso de egoísmo e deixava-se levar pela sua vontade de só parar dentro da baliza contrária. Os golos do Pequeno Polegar eram tão imprevisíveis como a sua forma de viver. eram a alegria dos domingos. Ou, como cantava Gal Costa: «Eu preciso descobrir/ A emoção de estar contigo/ Ver o sol amanhecer/ E ver a vida acontecer/ Como um dia de domingo».

O povo do Pacaembu via a vida acontecer com a emoção de estar com ele durante uma hora e meia. E Luizinho ensinava algo a todos os que queriam aprender com ele: não ter medo, desconhecer o medo, ignorar o medo, combater o medo. Fintar o medo, afinal. Parece que nunca ninguém lhe perguntou se se preocupava com a prostituição, com o ultramontanismo e com o pauperismo. Fizeram bem. Não era moço para entrar em conversas do género. Tinha mais em que pensar: inventar dribles, por exemplo. E os dribles podem ser um alívio para as questões terríveis que se desenrolam neste tempo triste, triste._Questões terríveis! Questões terríveis!

afonso.melo@newsplex.pt