O Pinóquio de Collodi e Garrone

Depois de O Conto dos Contos, o realizador de Gomorra volta a explorar o universo dos contos infantis. Com Federico Ielapi e o regresso de Roberto Benigni e acabado de chegar às salas, está aí o Pinóquio de Matteo Garrone.

Para se chegar a este Pinóquio, a personagem que Matteo Garrone decidiu que seria interpretada por um menino de carne e osso nesta nova adaptação ao cinema da história infantil pela primeira vez publicada em 1883 por Carlo Collodi, foram necessários meses e meses de trabalho – e três horas de maquilhagem em cada um dos dias de rodagem para Federico Ielapi, o ator de oito anos que o interpreta. E aqui, à possibilidade de um Pinóquio de madeira que é afinal de carne e osso, Matteo Garrone não chegou à primeira. «Uma das coisas mais difíceis, além do nariz, era o seu sorriso. O Pinóquio é uma personagem que se ri. É exuberante, cheio de vida. Mas sendo de madeira não era fácil fazê-lo rir-se», contou o realizador à revista Variety. «Fizemos um teste em Londres que não resultou. Estava demasiado negro, não tinha a doçura deste Pinóquio do filme». Voltou-se ao início.

Foram mais dois meses de trabalho, e antes da rodagem não se voltou a fazer um novo teste. Garrone decidiu correr o risco. «Decidi que começaríamos a filmar no dia em que o novo Pinóquio chegasse ao set». Disse para si, nas palavras reproduzidas na mesma entrevista: «Vai ser como o nascimento do meu filho». Assim nasceu o Pinóquio que acaba de chegar às salas nacionais. Um Pinóquio que o realizador se orgulha de ter «amado imediatamente» e que, e já lá vamos, procurando agradar a todos, vai também à procura de recuperar um pouco do que do original de Collodi se havia perdido ao longo de já mais de um século de adaptações ao cinema e à televisão. Mas Garrone não se limitou a isso. Disse Carlo Chatrian, o diretor do Festival de Cinema de Berlim, sobre o filme que, mantendo-se fiel à visão de Collodi, o realizador foi capaz de criar um Pinóquio que é também seu. Sem surpresas.

Para Garrone, que cresceu com a história e tem ainda memória do primeiro storyboard de Pinóquio que desenhou ele próprio quando tinha ainda seis anos, foi a minissérie televisiva de Luigi Comencini que se estrearia poucos anos depois a referência para a vida. Disse em entrevista ao Cineuropa: «É uma história que esteve comigo durante toda a vida. Depois de O Conto dos Contos, quis continuar a minha jornada exploratória por esta dimensão dos contos de fadas».

Só «há uns cinco anos», segundo contou à mesma publicação, leu a história original escrita ainda no século XIX pela primeira vez. «Ao ler a obra, descobri que a história era bastante surpreendente; senti que desconhecia muitas coisas, e que havia muitas coisas de que não me lembrava. Foi assim que surgiu a ideia de fazer disto um desafio, porque quando se faz o Pinóquio é preciso encontrar uma forma de trazer algo surpreendente para a audiência. Afinal, o espectador acha que conhece a história toda. Para mim, a melhor forma de o surpreender foi regressar ao livro original».

Foi o próprio Walt Disney quem, para a animação de 1940 que, como sucedeu invariavelmente com as suas produções, estabeleceria o cânone que até hoje perdura não só para a fábula, também para a personagem, decidiu fazer alterações à personagem original de Carlo Collodi em As Aventuras de Pinóquio, história infantil sobre a qual se conta ter sido enjeitada pelo próprio autor. Esculpiu então Walt Disney um boneco virado rapazinho mais dócil, juntou-lhe uns traços de inocência. De violência bastava a que sobrava ainda à história. Até então de adaptações cinematográficas, existiam apenas o filme mudo de Giulio Antamoro de 1911 e uma animação com live action russa assinada em 1939 por Aleksandr Ptushko. Depois disso, os remakes sucederam-se às dezenas, um deles, em 2002, escrito e realizado por Roberto Begnini, que interpretava aí Pinóquio ele próprio e a quem Matteo Garrone decidiu entregar agora o papel de Geppetto.

«É ator, realizador e muito mais. E além disso tudo vem do mundo de Pinóquio, da cultura toscana que reflete. Como poderia então encontrar um Geppetto melhor? Tem uma disposição natural para a comédia. Portanto ajudou-me a encontrar soluções com uma certa leveza, uma ironia», explicou à Variety sobre a escolha. «Ao ser de longe o mais famoso ator italiano, tem uma inclinação natural para o mainstream». Não admira que este Pinóquio esteja a ser visto como o mais acessível dos seus filmes. Um filme para toda a família, como o próprio admite: «Quando estava no set, estava sempre a pensar em como é que as crianças iriam experienciar cada cena. o meu mantra era manter as coisas simples, sem superestruturas intelectuais; tentar criar uma linha reta em direção às emoções dos espectadores. Foi um grande crescimento para mim enquanto realizador».

Mas talvez não pudesse existir noutro equilíbrio a adaptação de uma história «que fala às crianças de todo o mundo» e que o acompanhou por toda a vida – do tempo em que se revia em Pinóquio a um outro, mais recente, em que se encontrou na figura de Geppetto olhando para o seu filho, «um pequeno Pinóquio» ele próprio.

Quando em 2008 estreou a sua adaptação do livro de Roberto Saviano, Gomorra foi considerado um dos filmes de gangsters mais realistas alguma vez vistos. Em 2015, não surpreendeu com a crueza que caracterizou O_Conto dos Contos, uma adaptação Pentamerone, ou Lo cunto de li cunti, em napolitano, língua em que foi originalmente escrito este livro do século XVII, a base dos contos de fadas que nos chegaram depois por Perrault ou os irmãos Grimm. Dizia então o realizador em entrevista ao i sobre como, no fundo, o seu cinema, é sempre o mesmo: «Também Gomorra é sobre contos de fadas. Quando decido fazer um filme, o que me interessa é o desejo e o conflito humano, é por aí que tudo começa. Por isso, em Imbalsamatore, em Gomorra, em Reality – A Grande Ilusão ou em O Conto dos Contos o que temos são pessoas que lutam pelos seus desejos e pelos seus sonhos. Gosto de trabalhar sobre a contradição humana, é por aí a minha abordagem».

E diz agora sobre Pinóquio, citado pelo Cineuropa: «É uma história que fala de nós; fala do passado porque é uma história de pobreza, a história de um pobre camponês. Ainda assim, é também uma história para o futuro porque fala sobre ser-se humano, e sobre a luta pela sobrevivência, pela felicidade, pelo amor. Também é uma bonita história de amor entre um pai e um filho».