O pequeno drama das sobrecapas

Para o bibliófilo, o livro incompleto, mesmo que em falta esteja um elemento supérfluo, perde o seu valor. Uma obra rara com uma sobrecapa em bom estado é um troféu altamente cobiçado. Sem essa singela folha de cobertura, ninguém lhe pega.

Um dos pequenos dramas do colecionador de livros são as sobrecapas, aquela folha que envolve alguns livros de capa rígida. De certo modo, a sobrecapa existe para proteger a verdadeira capa (e porventura como dispositivo publicitário, uma vez que permite um grafismo mais apelativo do que as sóbrias capas cartonadas), mas em muitos casos torna-se um fim em si mesma. Sem ela, o livro já não está completo. E, para o bibliófilo, o livro incompleto, mesmo que em falta esteja um elemento supérfluo, perde o seu valor. Uma obra rara com uma sobrecapa em bom estado é um troféu altamente cobiçado. Sem essa singela folha de cobertura, ninguém lhe pega.

Por que digo que as sobrecapas podem ser um pequeno drama do quotidiano? Porque normalmente são a primeira componente a deteriorar-se. Elas estão lá para isso, diria que estão para o livro como o para-choques está para o automóvel. Mas mesmo assim ninguém gosta de ter a parte mais visível do livro em mau estado. Até porque, como já aqui escrevi, o livro é também (nalguns casos é sobretudo) um objeto decorativo.

Se em condições normais as sobrecapas estão naturalmente sujeitas a desgaste e a acidentes, numa casa com muitas mãos pequeninas ainda pior. As crianças têm um dom natural para descobrir os pontos fracos dos objetos e, quando ninguém as está a ver, as sobrecapas são um dos seus alvos favoritos. Vincos, rasgões, manchas de sujidade, lacunas tornam-se comuns. Mas nem por isso menos irritantes.

Um dos casos mais gritantes entre os meus livros é o de uma edição inglesa sobre o Joaquimismo, uma corrente mística fundada por Joaquim de Flore (c. 1135-1202 ), abade cisterciense que obteve o favor de quatro Papas mas foi mais tarde denunciado como herético.

Trata-se de um belo volume, sólido, sóbrio, digno, bem envelhecido, mas a que falta um bom pedaço da sobrecapa na zona da lombada. Faz pena.

Depois de muito refletir, resolvi-me a tentar remendar essa falha. Talvez fazendo uma fotocópia da parte de trás, onde aparecem outros títulos da mesma editora num corpo semelhante ao da lombada, e recortando as letras uma a uma conseguisse depois reconstituir a parte em falta.

Dirigi-me a um centro de cópias e pedi ao rapaz que me atendeu uma fotocópia a cores da parte de trás do livro. «Não posso fazer isso», informou-me. Apesar do ar muito sério, pensei que ele estivesse a brincar. Garantiu que não. Eu insisti. «Não posso, porque os livros têm direitos, ainda para mais a Oxford…», disse, como quem dá uma lição de moral. «Mas eu não estou a pedir para me fotocopiar o livro». Mostrei-lhe a lacuna na sobrecapa e expliquei-lhe que precisava da cópia para fazer um restauro. Ele não se comoveu. «O grafismo também tem direitos». Já bastante incomodado, perguntei-lhe: «E eu, que sou o dono do livro, NÃO TENHO DIREITOS?!». «Tem», respondeu, «mas eu não posso fazer isso».

Não sei o que mais me irrita, se leis idiotas, se pessoas limitadas que as aplicam cegamente. Mas a coisa já me estava a deixar bastante nervoso. Quando o rapaz me voltou a falar da Oxford, perguntei-lhe se acaso fosse o livro da Universidade de Lisboa já não havia problema. Mas enfim: sabia que não podia ganhar aquela discussão e regressei para casa. Onde estou agora a olhar para a sobrecapa rasgada, a pensar como é que hei-de resolver isto.