Os 6 minutos e 24 segundos de Marcelo

Vale a pena visitar o site da Presidência da República e ouvir de novo a declaração ao país que Marcelo Rebelo de Sousa fez na noite de sexta-feira da semana passada, a propósito do decreto presidencial sobre o estado de emergência em vigor nestes 15 dias.

Vale a pena visitar o site da Presidência da República e ouvir de novo a declaração ao país que Marcelo Rebelo de Sousa fez na noite de sexta-feira da semana passada, a propósito do decreto presidencial sobre o estado de emergência em vigor nestes 15 dias.

Por ela pode perceber-se a razão por que António Costa teve a suprema desconsideração – pelo Presidente, pela Assembleia da República e seus representados – de não marcar presença no Parlamento no dia em que no hemiciclo de S. Bento se discutiu e votou a autorização ao chefe de Estado para decretar o estado de emergência pela segunda vez na história destes 46 anos de democracia.

Se o primeiro-ministro e líder do PS, tal como em março, considerava desnecessário e precipitado tal estado de emergência, o Presidente não só o tinha por indispensável para travar a evolução galopante da pandemia como aproveitava a oportunidade para exigir que se retirassem «lições daquilo que nos diversos domínios não correu bem no passado» – isto é, para corrigir os erros.

Em seis minutos e 24 segundos, Marcelo foi direito ao assunto nas questões que manifestamente cavaram um enorme fosso entre Belém e S. Bento e que a generalidade dos meios de comunicação social parece querer continuar a não ver ou insiste em menosprezar.

A unidade nacional a que Marcelo e Costa apelam em entrevistas em que se desfazem em elogios públicos e em recados codificados – que por isso ficam nos circuitos fechados dos corredores da política pura e dura – convive naturalmente melhor com a imagem de uma perfeita coabitação que sirva os interesses políticos mais imediatos de ambos.

Mas é já óbvio que, conhecendo-se de há longas décadas, mesmo antes de o primeiro ser professor do segundo, os tempos de alinhamento absoluto e mutuamente proveitoso estão a chegar ao fim.

Além de ter assumido os erros na resposta à pandemia – tal como  em 2017 reconheceu as falhas gravíssimas do Estado na defesa das vidas e do património das vítimas dos trágicos incêndios de junho e de outubro –, Marcelo recriminou as medidas abusivas adotadas pelo Governo (como resulta da afirmação de que o estado de emergência permite «novas medidas, como a limitação de circulação em certas horas e dias e em municípios de mais alto risco») e a inação do Executivo em matéria de articulação entre o «Serviço Nacional de Saúde e os setores privado e social ou cooperativo» (defendendo que tem de ser feita «preferencialmente por acordo e sempre com justa compensação» e rapidamente, «perante as necessidades aumentadas no futuro próximo» – ou seja, pode o Governo, com seus parceiros de esquerda, esquecer a requisição civil dos privados sem mais). 

E disse ainda ser necessário «acelerar o investimento na Saúde e em particular nos seus heroicos profissionais, agora também pensando no Orçamento do Estado para 2021».

Marcelo não poderia ser mais elucidativo.

A verdade, porém, é que, em 6’24’’, ainda acabou por sê-lo, ao afirmar que este estado de emergência será reavaliado em final de novembro «olhando para as exigências da pandemia e com a garantia constitucional permanente dessa reavaliação depender, além de parecer do Governo, órgão encarregado da gestão diária da pandemia, de iniciativa e de decisão do Presidente da República e de autorização da Assembleia da República, um e outra eleitos democraticamente pelo Povo». Para concluir que conta com todos e cada um dos portugueses, como os portugueses podem contar com o Presidente da República.

Não há na história da democracia portuguesa – nunca com Cavaco, Sampaio, Soares ou mesmo Eanes – uma mensagem presidencial tão presidencialista, remetendo para a legitimidade reforçada do Presidente e do Parlamento e classificando o Governo como órgão de «gestão diária» dos problemas aos quais há que dar resposta.

É assim que funciona o modelo semi-presidencialista francês, por oposição ao modelo semi-parlamentarista português.

Não foi António Costa quem passou a Marcelo os contactos dos seus ministros e secretários de Estado para que o Presidente pudesse falar diretamente com eles e ‘influenciá-los’?

Agora, que até já oficializou o não apoio do PS a um candidato presidencial e ficou definitivamente comprometido com a célebre antevisão na Autoeuropa da reeleição de Marcelo, aguente-se.

Se já dificilmente poderá ficar para a História como o mais votado dos Presidentes – as sondagens apontam-no cada vez mais longe do recorde de Mário Soares –, Marcelo há de encontrar para si mesmo outro desafio para o seu segundo mandato. É mais forte do que ele.

Sendo que Costa também não se deixará ficar.

Isto promete.

O Supremo Tribunal Administrativo considerou que a resolução do Conselho de Ministros que proibiu a circulação entre concelhos no primeiro fim de semana de novembro está conforme à Constituição e justificou-se plenamente face à pandemia. Ora, a Constituição é taxativa e não deixa dúvidas, como ensina Jorge Miranda e o Presidente Marcelo reiterou agora na declaração ao país. Os Tribunais são órgãos de soberania, independentes, cujo fim não é validar resoluções ou políticas do Governo, mas aplicar a lei conforme à Constituição e aos princípios nela consagrados, assim como recusar-se a aplicá-la sempre que a/os viole/m. Quando os Tribunais superiores deixam de nos dar essa garantia…