“Espero que o professor Marcelo não se transforme noutra figura”

Presidente da câmara de Gaia e dirigente do PS, Eduardo Vítor Rodrigues,  diz que o país tem de evitar uma crise política e critica Bloco de Esquerda. Acordos com PSD deixaram de ser possíveis.

“Espero que o professor Marcelo não se transforme noutra figura”

 

Como está a lidar com a pandemia?

Este é um problema nacional. Tem sido evidente o papel que as autarquias têm tido. Tem sido evidente o papel dos municípios numa lógica de proatividade. O país tem tido nas câmaras municipais um pilar muito importante neste processo, muito para além das suas responsabilidades ou competências legais.

Tem tido recursos para atuar no combate à pandemia e aos problemas sociais que estão a surgir por causa das medidas restritivas?

Há coisas que, inevitavelmente, foram interrompidas porque as prioridades são outras. Temos de nos preparar para uma coisa que não vai durar apenas dois ou três meses. Tem havido um grande esforço. Claro que tudo seria melhor se existisse uma maior liberdade. É inevitável pensar na possibilidade de uma linha de crédito especificamente direcionada para esta problemática da pandemia e dirigida às câmaras municipais. Algumas câmaras estão a começar a ficar numa situação de alguma exaustão financeira. Gaia tem uma situação financeira que lhe permite dar respostas positivas, mas existe um limite.

O Governo não podia ter preparado o país de uma forma mais adequada para enfrentar uma segunda vaga da doença?

Somos todos bons treinadores quando a nossa equipa perde, mas é depois do jogo. Houve um tempo em que sentimos a obrigação de dar as mãos e unir esforços, mas isso passou muito rapidamente. A pandemia está a ser utilizada para o combate político, como se estivéssemos a discutir uma opção de obras públicas ou outra coisa qualquer.

Mas isso não impede que a oposição possa ter razão quando acusa o Governo de não ter preparado o país para enfrentar a segunda vaga.

Alguns setores políticos têm passado a ideia de que o Governo devia estar mais bem preparado. E a Alemanha? E a França? E os espanhóis? É fácil dar palpites depois do jogo. Alguém antevia que tivéssemos um processo tão doloroso como estamos a ter agora?

Era previsível que, a seguir ao verão, os números voltariam a crescer.

Aquilo que se antevia como segunda vaga foi preparado ao limite do que é possível. Acho curioso que aqueles que criticaram ferozmente as alterações na contratação pública queriam agora que o Governo resolvesse em dois ou três meses a contratação de médicos ou de equipamentos de proteção individual. A crítica politica é legítima, mas devíamos estar mais empenhados em resolver os problemas. Se há alguma coisa que podemos dizer desta pandemia é que ela é implaneável. Ou então assumimos que a Europa está a falhar. Temos grande parte da Europa desenvolvida a viver situações dramaticamente piores do que as portuguesas. O Governo tem feito um bom trabalho.

Temos conseguido prevenir o impacto social da pandemia, nomeadamente nas pessoas que ficaram sem trabalho ou perderam rendimento?

O impacto é brutal. Nunca senti uma pressão tão grande na estrutura de apoio social. A situação é muito difícil, mas sinto que as pessoas estão conscientes dos problemas. A verdade é que a esmagadora maioria dos portugueses têm tido uma atitude construtiva e colaborante, e isso tem permitido uma situação um bocadinho mais estável. Mas é verdade que tem havido muita gente a perder rendimento e a necessitar de apoio. As pessoas têm razões para estarem angustiadas com o futuro. O nível de indefinição e de incerteza é grande. Mas não se combate a incerteza a fazer autoflagelação.

Está a falar de que partidos quando refere que podia existir um maior consenso?

Há uma coincidência temporal entre o crescimento dos números da pandemia e a aprovação do Orçamento do Estado para 2021. Tem sido evidente que a pandemia deixou de ser um fator de união e passou a ser um fator de conflitualidade. Isto acontece de uma maneira geral, mas talvez me surpreenda mais o comportamento dos partidos de esquerda, como o Bloco de Esquerda.

Por ter deixado de apoiar o Governo?

O Bloco de Esquerda e o PSD estão a definir a sua estratégia numa base de taticismo politico. Neste momento era importante que estivéssemos unidos para dar respostas às pessoas no próximo ano, e não a pensar nas próximas eleições autárquicas ou legislativas. O país precisa de alguém que cuide do momento atual e projete o momento futuro, em vez desta enorme conflitualidade. Num momento de crise, as pessoas querem paz, serenidade, tranquilidade e otimismo, e o que têm visto é que os atores políticos nem sempre estão à altura das circunstâncias.

Não esperava que o Bloco de Esquerda votasse contra o Orçamento do Estado?

Se pensarmos numa lógica de tática política, não é uma surpresa, mas, neste momento, a tática politica devia dar lugar ao interesse coletivo. É muito estranho que o Bloco de Esquerda tenha ajudado a aprovar Orçamentos que tinham muito menos medidas sociais e, este ano, já encontrou razões para votar contra.

Não teme que o Governo do PS, ao contrário do que aconteceu na primeira legislatura, em que fez acordos com os partidos à sua esquerda, não tenha condições para cumprir a legislatura?

Aquilo que tenho visto é muita gente surpreendida com o timing deste tipo de comportamentos políticos. É nos momentos difíceis que precisamos de estar juntos.

O Bloco exige mais apoios sociais justamente por causa da pandemia e dos problemas sociais que esta situação está a causar.

Temos o Orçamento mais expansionista em termos sociais e temos esta gestão tática do Bloco de Esquerda. Devemos olhar para o que pode acontecer no país e estar atentos à angústia das pessoas. O que aconteceu nos Açores deve fazer a esquerda pensar se está a fazer um serviço ao país ou se está a fazer um serviço à direita. É muito penoso para todos, no pior momento na história da democracia, vermos o Orçamento passar por tão poucos votos de diferença e um clima de conflitualidade tão forte.

Isso não faz prever que o apoio da esquerda ao Governo pode desaparecer no próximo Orçamento?

Existe esse risco, mas com os atuais equilíbrios e com um Presidente da República que tem sido o fiel da balança, criticando quando é preciso criticar mas assumindo uma postura construtiva, há condições para que o Governo chegue ao fim da legislatura. A questão fundamental é garantir que o Governo, nesta legislatura, consegue combater com a mesma genica e a mesma qualidade os desafios que temos pela frente. Seria muito grave e muito injusto que neste momento houvesse instabilidade política. O Bloco de Esquerda está a tomar esta posição política no pressuposto de que o Orçamento, muito provavelmente, será viabilizado e está a fazê-lo na lógica da tática politica.

Teria outra postura se o PCP também votasse contra?

Era impensável, neste momento, uma crise política. Vamos ter meses muito difíceis pela frente. Depois de se atenuar o impacto da pandemia, ainda vamos ter muito trabalho pela frente para conseguirmos recuperar a economia e o emprego. Era impensável que se somasse a isto uma crise política. Vamos ter as eleições presidenciais e não pode haver eleições legislativas nos próximos meses. A haver eleições seria na segunda metade do ano de 2021, mas espero que, nessa altura, o Governo e os partidos estejam empenhados em recuperar o país, e não em afundar o país.

O PS decidiu não dar nenhuma orientação de voto aos militantes nas eleições presidenciais. Está entre aqueles socialistas que desejam a reeleição do atual Presidente da República?

O professor Marcelo Rebelo de Sousa tem exercido o cargo com dignidade e com elevação. Houve dois ou três momentos do seu mandato em que foi duro com o Governo mas, neste momento, o país precisa de ter um equilíbrio de poderes e tranquilidade na governação. Faço uma avaliação positiva do mandato do atual Presidente da República.

Isso quer dizer que vai apoiar Marcelo Rebelo de Sousa?

Não tenho uma participação muito ativa nesse processo nem me parece que vá haver uma grande dinamização. Aquilo que digo é que em nome desta tranquilidade e desta serenidade institucional ficaria muito contente com a vitória do professor Marcelo Rebelo de Sousa e antevejo votar nele. Tem tido um papel de equilíbrio. Nestes cargos, não temos de olhar para o partido e parece-me que seria a melhor solução para o país.

Mas há muitos socialistas que rejeitam apoiar um candidato de direita. Compreende essa posição?

Claro. O professor Marcelo Rebelo de Sousa tem uma história. Não é um indivíduo neutro. Tem um conjunto de pensamentos muito claros. Quem olhar para este processo numa lógica de trincheiras partidárias, é evidente que tem mais reservas. Eu, apesar de tudo, acho que o Presidente da República não deve ser um representante de um partido. O atual Presidente da República, em muitos casos, mostrou ser equidistante e fê-lo nos momentos mais importantes para o país. Isso não pode deixar de ser valorizado, mas percebo quem opta por uma solução mais partidarizada.

Não se identifica com Ana Gomes?

Há posições com as quais me identifico. Tem um trajeto espetacular na defesa dos direitos humanos. Teve um papel decisivo na questão de Timor. Mas não é disso que estamos a falar. Estamos a falar daquele que, neste contexto concreto, muito incerto e complexo, melhor pode dar continuidade a um trabalho de articulação com o Governo. Se me disser que, dois meses depois de tomar posse, o professor Marcelo se transforma noutra figura e passa a ter um comportamento completamente diferente, não lhe vou esconder que sentiria uma profunda desilusão e ficaria muito triste. Estou a avaliar o professor Marcelo Rebelo de Sousa neste momento e no contexto do mandato.

A expetativa que tem é que o segundo mandato seja na linha do primeiro?

O país precisa de uma linha de continuidade. O país precisa que o professor Marcelo seja, a partir de 2021, o mesmo professor Marcelo que foi até 2021. Às vezes há aquela ideia de que o segundo mandato de um presidente é muito diferente do primeiro. Mas aquilo de que precisamos é de um Presidente da República e de um Governo com uma postura construtiva para resolver os problemas do país. Se for para fazer de um segundo mandato um novo modelo de gestão conflitual ou mais partidarizado será uma grande desilusão. Para mim e para todos aqueles que estão a fazer os juízos de valor que estou a fazer.

Não seria a primeira vez que um Presidente da República teria uma relação diferente com o Governo no segundo mandato. Mário Soares, por exemplo, teve o apoio do PSD e, depois, as coisas mudaram.

Um dia vamos ter de pensar no regime. Há coisas para mim que são muito claras. Temos de pensar na alteração do mandato do Presidente da República para um só de sete anos, mas também na alteração dos mandatos dos presidentes de câmara dos quatro para os cinco ou seis anos.

Quatro anos não é suficiente?

Não podemos fazer apenas uma gestão de curto prazo. Um dia vamos ter de repensar este modelo. Não se pode pedir aos autarcas que tenham uma visão de médio e longo prazo com mandatos que são basicamente de três anos, porque metade da primeira parte é para tomar posse e metade da última parte é para preparar as eleições. Isso parece-me penoso. Esta revisão mais global do sistema levaria a que o Presidente da República cumprisse um único mandato. Mas enquanto isto não acontece tenho a expetativa de que o segundo mandato tenha o mesmo nível de rigor e o mesmo nível de desempenho que teve até agora: proximidade com as pessoas e uma relação muito positiva com o povo português. As pessoas vão necessitar de quem lhes dê confiança, tranquilidade e confiança na gestão. Se vier a ser um mandato diferente, tenho pena, e isso acaba por defraudar muita gente, mas acredito que não vai acontecer porque os desafios que o país tem pela frente são maiores do que as tricas políticas.

Mas assume que é um risco um socialista apoiar a recandidatura de Marcelo Rebelo de Sousa?

A partir do momento em que estamos perante um novo mandato, existe sempre esse risco. Mas julgo que estamos todos cientes de que esta pandemia não é um pequeno problema. Isto é uma coisa de uma gravidade significativa. O risco de isso acontecer é reduzido. Se achasse que não era reduzido não votaria nele.

 

Voltando ao risco de uma crise política no próximo ano: se a esquerda falhar existe alguma possibilidade de uma aproximação ao PSD?

Se me perguntasse isso há 15 dias respondia de uma maneira diferente. Hoje, infelizmente, tenho de responder de outra madeira. Tem havido acordos em áreas temáticas entre dois partidos que partilham muito do modelo e do sistema que temos em vigor. É normal existir uma relação entre o PS e o PSD, porque existem muitos pontos em comum. Mas, depois do que aconteceu nos Açores, vejo com dificuldade que possam existir entendimentos. O doutor Rui Rio matou de vez o PSD da social-democracia europeia que nós conhecíamos. Para mim, foi uma dupla angústia. Tinha dele uma impressão muito positiva relativamente à forma muito assertiva como defende a forma como se deve estar na política.

O acordo nos Açores mudou tudo?

Construir uma solução de Governo com uma área que está atravessada por extremismos é abrir o caminho para a normalização do Chega. Há um PSD antes e um PSD depois deste acordo com o Chega. Vejo com muita dificuldade que haja qualquer acordo de regime entre o PS e o PSD porque, com esta questão dos Açores, o PSD parece estar mais disponível para se aproximar da extrema-direita.

Não acredita que se trata apenas de um acordo a nível regional?

Isto não foi feito nas costas do doutor Rui Rio. Este acordo tem uma leitura nacional. Estão em cima da mesa questões relacionadas com a revisão constitucional. Rui Rio ganhou o Governo dos Açores, mas defraudou muitos verdadeiros sociais-democratas que não esperavam uma deriva destas. O PSD vai demorar muito tempo a recuperar desta situação.

A direita compara a aproximação do PSD ao Chega com o acordo feito, em 2015, entre o PS e os partidos de esquerda.

Há muitas coisas no programa do Bloco de Esquerda e do PCP com as quais não me identifico. Mas uma coisa é uma relação com partidos que têm posições defensáveis e outra é construir uma relação com partidos que defendem a castração química e a pena de morte.

Como encara estes novos fenómenos políticos?

Vejo com preocupação. Era muito importante que o sistema refletisse sobre si próprio. A culpa de algumas destas questões não é do Chega. A culpa é do sistema que permitiu, pelas suas debilidades, abrir a porta a debates sobre problemas que deveriam estar resolvidos há muito tempo: o debate sobre os atrasos na Justiça; o debate sobre as desigualdades sociais; o debate sobre um sistema económico tendencialmente desigualitário. São debates que o sistema devia ter sedimentado há muito tempo. O Chega é um produto de um contexto social que lhe permitiu ganhar algum protagonismo. Isso não significa nenhum rejuvenescimento do sistema. A maior parte das pessoas que vejo à volta do Chega são desavindos de outros partidos. A ideia de que chegou um partido novo é claramente exagerada. O Chega passou a ser o albergue daqueles que não vão na lista no lugar de que gostavam. Estamos perante um processo que os partidos da democracia devem resolver rapidamente.