O pesadelo logístico da vacina

Mesmo que a vacina da Pfizer seja aprovada, vai demorar meses a escalar a produção, arranjar câmaras frigoríficas, organizar pessoas para tomar as duas doses. ‘Isto não é um estalar de dedos’, resume Manuel Carmo Gomes.

Depois de meses de más notícias atrás de más notícias, uma maré de otimismo percorreu o mundo quando a farmacêutica americana Pfizer e alemã BioNTech anunciaram que os resultados preliminares da sua vacina mostram mais de 90% de eficácia em evitar covid-19, a doença causada pelo vírus SARS-CoV-2. Contudo, mesmo assim, há cada vez mais motivos para se estar apreensivo.

Primeiro, pelo pesadelo logístico que será a aquisição e distribuição de uma potencial vacina. Além disso, o movimento antivacinação cresce em todo o mundo, incluindo em Portugal, pondo em risco uma eventual imunidade de grupo. Depois há incertezas quanto à duração da proteção da vacina, o que poderá obrigar a múltiplas rondas de inoculação, ou se esta impede infeções assintomáticas. E, mesmo no melhor dos cenários, a vacinação em massa ou sequer de grupos prioritários não deverá ser possível logo na primeira metade do ano. Até lá, temos um inverno duro e mortífero pela frente.

«O cenário provável é que a vacina seja autorizada ainda este ano, talvez a meio de dezembro. Os primeiros lotes fabricados – a Pfizer estima uns 50 milhões – vão ser distribuídos aos grupos prioritários nos EUA», avalia o epidemiologista Manuel Carmo Gomes, professor na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, ao SOL. «Em março, abril, maio deverão estar a ser distribuídos a grande escala nos EUA, e na Europa, provavelmente, também».

«Durante todo este período, nós continuamos a precisar de ter o mesmo tipo de cuidados. E mesmo depois de a vacina ser introduzida, isso não interrompe a pandemia de um dia para o outro», continua. «Isto não é um estalar de dedos. O número de casos começa a decair, decair, decair, mas isso pode prolongar-se por meses».

«Às vezes, as pessoas perguntam-me: ‘Quando voltamos à nossa vida normal?’ Se tudo correr bem, penso que será só na segunda metade do ano que vem».

Claro que isso não faz com que os avanços na investigação da vacina deixem de ser motivo de celebração. «É uma vitória para a inovação, a ciência e para um esforço colaborativo global», assinalou o cofundador da BioNTech, Ugur Sahin, um cientista filho de imigrantes turcos na Alemanha, que liderou a investigação da sua empresa sobre a vacina. «Se a pergunta é se podemos parar a pandemia com esta vacina, a minha resposta é sim», acrescentou ao Guardian, mostrando-se otimista quanto à duração da proteção da vacina, algo que só será certo daqui a uns bons tempos, acompanhando os voluntários inoculados nos ensaios clínicos.

«Até agora, só temos pistas indiretas. Estudos com pacientes com covid-19 mostram que aqueles com respostas imunitárias fortes ainda mantêm essa resposta seis meses depois. Imagino que possamos estar seguros pelo menos um ano».

«O facto de os anticorpos permanecerem alguns meses dá uma certa garantia de que, nesse período, as pessoas têm imunidade», concorda Carmo Gomes. «Mas uma coisa é ter imunidade contra doenças, outra é contra a infeção», realça. «Uma pessoa pode ser infetada, pode até nem ter sintomas porque está protegida, mas ser portadora. Isso não sabemos», explica. «Eu, pessoalmente, que tenho muitos anos de experiência com este tipo de doenças, diria que um ano de imunidade, aquilo deve garantir. Mais que isso, não me atrevo a dizer».

 

O desafio do frio

Aprovada uma vacina segura, assumindo que Portugal consegue adquirir doses suficientes, temos o desafio de as distribuir. «Esta não é uma vacina daquelas normais do Programa Nacional de Vacinação que damos aos bebés aos dois, quatro, seis meses de idade. Portanto, todos os anos temos uns 80 mil bebés para vacinar», lembra Manuel Carmo Gomes. «Esta é uma vacina que vamos querer dar a milhões de portugueses. Não vamos conseguir fazer isso em semanas ou sequer em meses».

Os problemas aumentam caso venham parar a Portugal parte dos 200 milhões de doses da vacina da Pfizer compradas pela UE. Não é algo certo – há outros 11 candidatos na fase final de testes e Bruxelas já comprou centenas de milhões de doses de outras vacinas, incluindo a da AstraZeneca e da Universidade de Oxford, a primeira a entrar na última fase de ensaios clínicos.

É que a vacina da Pfizer não é como as outras. Trata-se de uma vacina de mRNA, uma tecnologia nunca antes usada numa vacina contra uma doença infecciosa. Requer duas doses, injetadas no braço dos pacientes com três semanas de intervalo, e uma extensa rede de refrigeração.

Não estamos a falar de congeladores comuns, com temperaturas entre os -10 e os -20 ºC, mas de câmaras frigoríficas a -70 ºC, onde a vacina da Pfizer deve ser mantida até pouco antes da injeção. Se isso não for possível, os frascos podem ser mantidos em congeladores normais até cinco dias, ou 15 dias nas caixas que serão providenciadas pela Pfizer, desde que se vá colocando gelo seco e não se abra a tampa mais de duas vezes por dia. O potencial para a confusão nos hospitais é enorme.

«A rede de frio vai ser um dos aspetos mais desafiantes na concretização desta vacinação», avisou Amesh Adalja, investigador da Universidade John Hopkins, citado num comunicado do Fórum Económico Mundial. «Vai ser um desafio em todos os contextos. Mesmo os hospitais de grandes cidades não têm instalações para armazenamento de uma vacina a temperaturas ultrabaixas».

Agora imagine-se como será distribuir a vacina da Pfizer em meios rurais, onde as pessoas percorrem enormes distâncias até um centro de saúde, quanto mais até um grande hospital. Uma das propostas em cima na mesa nos EUA é a criação de clínicas móveis de vacinação mas, depois, ainda há o problema de garantir que quem toma a primeira dose aparece três semanas depois.

Até há receios quanto à dificuldade em convencer as pessoas a aparecer da primeira vez. O movimento antivacinação nunca medrou tanto em Portugal como nos países anglo-saxónicos mas, nos últimos meses, registou-se um pico na desconfiança nas vacinas. Em setembro, mais de um terço dos portugueses inquiridos tinham dúvidas (25%) ou recusavam (12%) aceitar uma vacina contra a covid-19 quando, em junho, eram 18% e 7%, respetivamente , segundo um estudo europeu em que participou a Nova School of Business & Economics.

Some-se esta hesitação à possibilidade de que pessoas inoculadas possam ser portadoras de SARS-CoV-2, mesmo sem sintomas, e temos um cocktail explosivo que talvez possa minar a imunidade de grupo à covid-19, que se estima surgir com pelo menos 70% da população imune.