Tribunal afirma que violação do confinamento não constitui crime

Um homem foi condenado pelo Tribunal de Chaves a pagar uma multa no total de 1800 euros.

Na sequência de uma detenção por violação do confinamento obrigatório, o Tribunal da Relação de Guimarães absolveu um arguido por considerar que não tinha sido cometido qualquer crime de desobediência. Mas ao i, Pedro Moniz Lopes, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, explicou porquê.

De acordo com o acórdão emitido por esse mesmo tribunal, a violação de confinamento não constitui crime porque o decreto governamental publicado a 20 de março que assim o referia é inconstitucional. Este mesmo decreto foi aquele que deu origem ao primeiro estado de emergência. No mesmo acórdão pode ler-se que, segundo a Constituição, “a criação de tipos de ilícitos criminais é matéria da reserva relativa da Assembleia da República (AR)”.

O tribunal concluiu que “o Governo não se mostrava habilitado a definir matéria criminal” e que, por isso mesmo, o decreto-lei que constitui como crime a violação do confinamento obrigatório incorre em “inconstitucionalidade orgânica”.

O decreto-lei n.o 20/2020 configura que “ficam em confinamento obrigatório, em estabelecimento de saúde, no respetivo domicílio ou noutro local definido pelas autoridades de saúde: a) Os doentes com covid-19 e os infetados com SARS-CoV-2; b) Os cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado a vigilância ativa”. O incumprimento destas regras “constitui crime de desobediência”. A ministra da Saúde, Marta Temido, chegou mesmo a afirmar, no dia 19 de junho, que a violação do dever de confinamento “pode constituir crime de desobediência, sendo punível com pena de prisão até um ano e quatro meses ou pena de multa até 160 dias”.

Com base no decreto, um homem foi condenado pelo Tribunal de Chaves, no distrito de Vila Real, a pagar 15 euros durante 120 dias, por ter incorrido em crime de desobediência, tendo saído de casa violando o isolamento profilático determinado pela autoridade de saúde local.

O homem recorreu ao Tribunal da Relação de Guimarães, onde acabou por ser absolvido. O órgão considerou que, naquilo que dizia respeito ao crime de desobediência, o decreto “não respeita a Constituição, por violar a reserva relativa de competência da Assembleia da República”. O tribunal realça que a preocupação em conter o vírus não deve implicar o desrespeito “pelos fundamentos democráticos da sociedade”, visto que “a democracia não poderá ser suspensa”, e acrescenta ainda que ao olhar para o teor da resolução da Assembleia da República de 18 de março que autorizou o Presidente da República a declarar o estado de emergência, “não se retira dela que contenha uma autorização para que o Governo pudesse criar um novo tipo de crime”. No acórdão pode ainda ler-se que “não basta estatuir que ficam parcialmente suspensos alguns direitos, nomeadamente o direito de deslocação, para daí retirar sem mais a aceitação de que a suspensão de direitos implica automaticamente a criminalização das condutas”.

O que diz a Constituição
O professor de Direito Pedro Moniz Lopes confirmou ao i os argumentos avançados pelo Tribunal da Relação de Guimarães: de acordo com a Constituição, o Governo pode, “a coberto da declaração do estado de emergência, exigir que as pessoas fiquem em casa”. No entanto, não pode aplicar quaisquer sanções a quem não o fizer porque isso não é da sua competência. No artigo 19.o, n.o 7 da Constituição Portuguesa pode ler-se que a declaração do estado de emergência “só pode alterar a normalidade constitucional nos termos previstos na Constituição e na lei, não podendo nomeadamente afetar a aplicação das regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania e de governo próprio das regiões autónomas ou os direitos e imunidades dos respetivos titulares”. Visto que a criação de leis cabe apenas à AR, para que o crime de desobediência estivesse dentro dos parâmetros constitucionais existiam duas hipóteses: por um lado, a Assembleia da República teria de definir que a violação do estado de emergência seria punível por lei; ou, por outro lado, a Assembleia da República teria de criar “uma lei que autorizasse o Governo a, através de um decreto-lei governamental, definir essa situação”, explica Pedro Moniz Lopes. Nenhuma das duas aconteceu.

Em suma, o Governo, por si só, não pode definir nada “como crime porque, de acordo com a Constituição, quem define os crimes é ou o Parlamento, ou o Governo autorizado pelo Parlamento, e essa autorização não existe”.