“As crises podem ser momentos catalisadores de mudança”

Para Eduardo Catrogra, Portugal deve saber tirar as ilações necessárias das três crises económicas que experimentou em democracia para não cair agora no mesmo erro. O economista chama a atenção para o crescimento anémico da economia nacional e defende uma ‘convergência estratégica das forças políticas que representam 85% do eleitorado’.

No seu livro ‘Desenvolver Portugal, reflexões em tempo de pandemia’ pretende preparar os leitores para os desafios do futuro. Que desafios são esses?

São reflexões sobre a economia portuguesa em tempos de pandemia, num contexto da economia europeia e da economia global. A grande motivação foi dar o meu contributo para a análise das questões estruturais que afetam o nível de produtividade relativa de Portugal e que tem afetado o nosso fraco crescimento económico. Nos últimos 20 anos tivemos um crescimento económico anémico, um nível de valor acrescentado por pessoa quase estagnado e fomos perdendo terreno relativo não só no quadro dos países do alargamento que são nossos parceiros na União Europeia como também no quadro dos países da OCDE. Portugal está a caminho da cauda da Europa no rendimento per capita em paridades de poder de compra, apesar de nos últimos anos ter crescido um pouco mais do que a média, mas simplesmente como os outros estão a crescer muito mais, corremos o risco de caminharmos para a cauda da Europa. Ora, no contexto da pandemia e no contexto da quarentena comecei a refletir e a escrever sobre alguns destes temas e em julho resolvi, em vez de fazer artigos dispersos, produzir um livro com um conjunto de reflexões articuladas com vista a dar o meu contributo às novas gerações e aos agentes políticos, económicos e sociais sobre os fatores estruturais sobre os quais temos de atuar se queremos ter uma nova ambição de crescimento e de prosperidade para satisfazer os objetivos legítimos das pessoas de melhoria dos seus níveis de vida.

Fala do risco de uma quarta crise económica…

Quando os Governos na generalidade dos países resolveram encerrar parcelas das economias tornou-se evidente para mim que íamos ter uma crise económica que seria, desde o início do nosso regime democrático, a quarta crise económica. Tivemos a crise de 1977/78, a de 1983/84, a de 2011/2014 e agora íamos ter a crise de 2020. Há que chamar a atenção que as crises provocam custos sociais enormes para as pessoas, famílias e empresas, mas também podem ser momentos catalisadores de um processo de mudança. Sou um otimista, tenho esperança que mudem as mentalidades no sentido de atacarmos as questões estruturais da economia e da sociedade portuguesa para termos um maior valor acrescentado nacional e criarmos maior riqueza, mas isso exige a melhoria da produtividade, pois é fonte do crescimento económico e da prosperidade. Mas, para isso, é necessário interiorizar quais são as variáveis estruturais determinantes dos pilares fundamentais, críticos do processo de desenvolvimento económico e social. E são três: política institucional, económico-financeiro e social. Estes três pilares têm de ser objeto de ações estratégicas continuadas no sentido de atuarmos sobre o capital físico, humano e sobre a produtividade com vista a criarmos mais riqueza e assim criarmos as bases materiais para melhorar o nível de vida das pessoas.

Mas as anteriores crises tiveram como base problemas económicos e financeiros. Esta é diferente…

A crise de 77/78 derivou de erros na política económica, foi um problema de falta de divisas, crise na balança de pagamentos que está associado à instabilidade política que, na altura, se vivia. Caímos em pré-bancarrota, é um facto. Foi uma crise financeira, económica e social, mas não aprendemos . Depois de termos recuperado voltamos a ter políticas económicas inconsistentes e, em 1983, ainda com o escudo, voltámos a ter um problema de crise externa, isto é, falta de divisas para financiar importações e que teve na origem os défices externos do país e em défices públicos explosivos. Também aí não soubemos retirar as ilações, mas algo ficou, porque a partir de 1984/85 tivemos uma crise financeira, económica e social, mas as pessoas interiorizaram que era preciso estabilidade política e que era preciso a clarificação do modelo político-económico. Essa estabilidade política e essa clarificação do modelo político-económico veio com a entrada na então Comunidade Económica Europeia em 1986 que teve o suporte de 80% do eleitorado português. Contou apenas com a oposição do partido comunista e dos partidos mais à esquerda que estão hoje no Bloco de Esquerda. Nessa altura, aproveitámos uma lição das crises anteriores em que era preciso ter um modelo político-económico clarificado e isso aconteceu com a entrada na Comunidade Económica Europeia, foi a nossa opção por uma economia de mercado. Foi a escolha de uma democracia pluralista de acordo com um determinado tipo de valores: económicos, políticos e sociais. Foi uma opção, em que forças políticas foram vencidas, daqueles que queriam um modelo político-económico na chamada economia socialista de inspiração soviética.

E que ainda hoje são contra…

São aqueles grupos que ainda hoje são anti-União Europeia, anti-euro, anti-economia de mercado e anti-iniciativa empresarial privada. Esses grupos representam hoje cerca de 15% do eleitorado – se somarmos os votos do PCP e do BE. No entanto, houve uma clarificação à época. Mário Soares, que geriu a crise de 83/84 com Ernâni Lopes, pôs linhas vermelhas, precisamente porque optou por este tipo de modelo. Isto criou terreno para que Cavaco Silva tenha ganho as eleições e tenha sido primeiro-ministro durante 10 anos. Aproveitámos a ilação de que é necessário a estabilização do modelo político-económico, do modelo de tipo da economia, onde temos de ser competitivos e temos de procurar um posicionamento que nos permita criar mais riqueza para melhorarmos os índices de bem-estar económico e social. Mas quando digo que o nosso nível de vida relativo está estagnado posso dar exemplos. Em 1975, segundo dados da União Europeia, Portugal tinha em relação ao PIB per capita imparidades no poder de compra tomando como base 100 a União Europeia dos países desenvolvidos (que era a União Europeia a 15) tínhamos um índice 54,9% do nível de vida médio dos países mais desenvolvidos. Em 1985, tínhamos 55,7%, uma quase estagnação, mas em 1995, quando saí do Governo tínhamos 68,3%, ou seja, melhorámos quase 13 pontos percentuais em 10 anos. E em 2018 tínhamos 71,6%, portanto voltámos a estagnar.

Esta estagnação deve-se a medidas políticas ou por falta de vontade ou de capacidade?

Falta uma perceção de quais são as medidas que temos de tomar nos pilares político-institucional, económico-financeiro e social no sentido de criarmos condições para um crescimento económico sustentado e para um aumento da produtividade. O PIB per capita é consequência da multiplicação de dois fatores: o PIB a dividir pelo número de pessoas do país é igual ao PIB a dividir pelo número de pessoas que trabalham vezes a proporção do número de trabalhadores em relação à população total, aquilo a que os economistas chamam de taxa de participação. Se o segundo fator, que é a proporção da população ativa face à população total, não vai aumentar por razões demográficas e pelo envelhecimento da população então como é que podemos melhorar o rendimento per capita? Se há um fator que está constante ou com tendência para o decréscimo e que temos de aumentar é o PIB por hora trabalhada ou por número de trabalhadores. Isto é o que se chama produtividade do trabalho e esta variável depende da qualidade do enquadramento da atividade económica, da qualidade do sistema político, da qualidade das instituições, da qualidade das políticas públicas que estão relacionadas com a qualidade do sistema que enquadra a iniciativa empresarial. E este é o pilar político-institucional. O segundo fator é o pilar económico-financeiro que depende essencialmente das empresas, isto é, as empresas têm a obrigação de desenvolver modelos de negócio inovadores no sentido de aumentar o valor acrescentado nacional, produzindo bens e serviços para o mercado e para mercados cada vez mais competitivos, aumentando as exportações com vista a criar valor e aumentando os níveis de aptidão tecnológica. Isso depende do volume de capital fixo, isto é, do investimento produtivo e dos níveis de eficiência com que se utilizam os recursos humanos e financeiros afetados às organizações, a que chamamos de produtividade. E depois o pilar social tem que permitir o desenvolvimento das pessoas: o sistema educativo, de saúde, de proteção social, etc. Portanto, não há receitas milagrosas. É um trabalho contínuo ao longo de anos e anos sobre cada uma destas ações permanentes e sobre cada um destes pilares. Só assim conseguimos progredir e acabar com a situação de estagnação. E é por isso que digo que desta vez tem de ser diferente. Os apoios comunitários, desde o primeiro quadro comunitário de apoio aos seguintes, o QREN, o Portugal 2020 e agora o novo quadro financeiro plurianual 2021/2027, mais o fundo de recuperação e de resiliência, mais todo um conjunto de apoios o que é que visam? Ajudar no processo de convergência real, visa ajudar os países menos desenvolvidos a aproximarem-se mais do nível de vida dos países mais desenvolvidos. Mas Portugal tem progredido pouco nos últimos 23 anos. É a altura de nos interrogarmos porquê.

Vários relatórios internacionais apontam para a fraca produtividade portuguesa…

Exato e isso não tem a ver com o número de horas que trabalhamos, mas com os modelos de organização, de gestão e com a qualidade do enquadramento. É sobre a qualidade das políticas públicas e empresariais que temos de atuar permanentemente. É evidente que isso implica reformas, alterações no funcionamento de certos sistemas. Por exemplo, o funcionamento burocrático do funcionamento do Estado no sentido de colmatar um ponto fraco estrutural, face a esses países que nos estão a ultrapassar, que é a celeridade da justiça económica. Temos de atuar sobre o desenvolvimento das competências e isso significa que, se calhar, temos de dar um novo impulso ao desenvolvimento do ensino técnico-profissional. Tem de ser prioritário e não vejo isso no discurso político.

O ensino técnico-profissional foi abandonado…

Mas foi um erro estratégico. Nem todas as pessoas têm vocação para ir para as universidades, mas todos têm de ter uma profissão. Portanto, o desenvolvimento do ensino técnico-profissional ligado ao desenvolvimento da educação digital é fundamental e tem de ser um dos vetores estratégicos, um dos eixos fundamentais de atuação. E no campo das políticas públicas não posso permanentemente andar a investir em projetos pouco reprodutivos. O investimento público na última década e, mesmo nos últimos anos, caiu significativamente. Não há formação bruta de capital fixo com origem em capital público e porquê? Porque os Governos deram prioridade ao aumento da despesa corrente em detrimento do investimento público e atingimos em 2018/2019 níveis historicamente mais baixos do investimento público e atingimos a carga fiscal máxima. Tudo isto está ligado com prioridades políticas. Isto não é pensar no crescimento do PIB potencial é pensar mais em termos eleitorais. E, ao mesmo tempo, temos de melhorar o sistema de concorrência de regulação de mercados, a qualidade dos efeitos de redistribuição das políticas sociais e todo um conjunto de sistemas, dentro de uma visão estratégica que é no sentido de criar condições para que Portugal seja um país vencedor, que contrarie a tendência de caminharmos para a cauda da Europa e sermos um país vencedor no quadro da economia europeia e no quadro de uma economia de mercado, competitiva e socialmente inclusiva. E isso é possível, pois temos recursos, temos competências e temos ambição, agora temos de interiorizar quais são as prioridades estratégicas fundamentais, onde temos de aplicar os nossos recursos e não é fazer mais do mesmo. Porque se está provado que nos últimos 22 anos não nos conseguimos aproximar do nível de vida dos países mais desenvolvidos é porque algo está errado e é por isso que digo que desta vez tem de ser diferente.

A receita tem sido sempre a mesma…

Tem de haver reformas dos sistemas públicos que tem a ver com a eficiência, com a redução drástica da burocracia e tem de se facilitar a vida às empresas e aos cidadãos. Tem de se melhorar o sistema de Justiça, o combate à corrupção, ter uma justiça económica mais atempada. Já viu qual é o país que aguenta ter processos de indícios de corrupção durante cinco, seis ou mais anos sem acusações?

Dá ideia que tudo se arrasta…

Dá ideia de falta de organização, de falta de eficiência e falta de gestão. Podemos fazer alterações cirúrgicas no modelo de gestão do sistema de justiça económica, incluindo a justiça tributária. As empresas não podem estar anos anos à espera que o Tribunal Tributário diga se tem ou não razão. Há aqui bloqueios no funcionamento que impedem de criar um ambiente produtivo.

Mas algumas dessas reformas foram apontadas no tempo da troika…

Foram postas em prática, mas algumas foram revertidas. Por isso é que digo que quem tem o poder político deve interiorizar quais são as variáveis determinantes que afetam a produtividade, a competitividade, a criação de riqueza e o bem-estar económico-social dos portugueses a médio e longo prazo. É isso que é fundamental.

Mas essas prioridades vão mudando consoante o Governo que está no poder….

Estamos numa democracia e os portugueses através do voto é que têm de criar condições para que as soluções governativas sejam adequadas à execução desses objetivos. Se não forem adequadas, como não foram até 1985, estagnamos outra vez. Quanto mais o processo político português for influenciado por partidos quer à esquerda, quer à direita que sejam anti-economia de mercado, anti-euro, anti-União Europeia nas suas políticas fundamentais e nos seus valores mais difícil será encontrar modelos práticos de funcionamento em que o país avance.

Recentemente a Moody’s disse que Portugal vai demorar mais a recuperar do que os outros países…

Os diagnósticos estruturais estão feitos, agora tem de haver ambição, uma vontade reformadora, uma capacidade de execução, uma alocação eficiente de recursos na economia e na sociedade. Vamos agora ter uma oportunidade de ouro como já tivemos outras oportunidades de ouro que nem sempre soubemos aproveitar adequadamente. Entre 1986 e 2018 recebemos a fundo perdido 136 mil milhões da União Europeia e o nosso PIB cresceu apenas 120 mil milhões de euros e o processo de convergência real estagnou nos últimos 22 anos. Isto significa que Bruxelas nos tem financiado ações para nos aproximarmos do nível de vida médio europeu e não estamos a conseguir. Aliás, Bruxelas no relatório referente a 2018 chama a atenção para isso: Portugal está a crescer mais do que a média, mas está a crescer menos do que todos os outros países que também precisam de crescer mais do que a média. É altura dos agentes políticos, económicos e sociais criarem uma nova ambição.

Corremos o risco de perder esta nova oportunidade?

Isto é um processo. Não é dizer ‘agora acordo e vou mudar tudo’. É um processo contínuo de boas políticas macro e micro económicas, boas políticas empresariais, boas políticas no campo das políticas públicas, boas políticas no campo das empresas. Em certos momentos da nossa história soubemos fazer essas alterações e melhorámos. Há sempre uma esperança que as coisas agora vão ser diferentes e, para isso, é preciso fazer reformas nos tais pilares que falei. Os diagnósticos já estão feitos, estamos em concorrência com os países do nosso espaço económico, do espaço da OCDE e também a nível global em termos de atração de investimento. Temos de ter ou não ter vontade de não melhorar os nossos pontos fracos relativamente a Espanha, Republica Checa, etc., para que nos pontos decisivos, o investidor diga ‘invisto na República Checa ou em Portugal ou em Espanha’. Sabemos quais são esses fatores críticos que derivam dos inquéritos aos investidores e, goste-se ou não da análise dos investidores, são eles que determinam a localização dos seus investimentos. Se queremos progredir temos de potenciar os nossos pontos fortes que também temos – como o clima, localização geográfica, redes de infraestruturas de transportes e comunicações, etc. – e mudar os pontos negativos, como o excesso de burocracia. Então temos de aproveitar a transformação digital ativa para reestruturar processos, otimizar estruturas e meios no sentido de conseguirmos progressivamente melhorar a qualidade do aparelho burocrático do Estado. Se temos excesso de despesa pública e produtiva, temos excesso de carga fiscal sobre as famílias e as empresas então temos que atuar sobre essas variáveis.

Nos últimos anos houve uma aposta forte no turismo em detrimento da atração de empresas estrangeiras?

Mas isso compete aos responsáveis terem pensamento estratégico. A nossa estrutura produtiva tem de ser diversificada em todos os segmentos, onde podemos ter vantagens competitivas face à concorrência interna e externa. Temos oportunidades na indústria extrativa, nas atividades ligadas à agricultura, ao mar, à pesca, à pecuária. Em segmentos da indústria transformadora, a indústria representa 16% do PIB nacional. Temos oportunidades no turismo, nos serviços de valor acrescentado. Fizemos bem apostar no turismo, mas não podia ser só neste setor. Temos de fazer a renovação da estrutura produtiva, subindo na cadeia de valor os setores tradicionais – como já fizemos em alguns segmentos, como os têxteis, calçado, cortiça – e temos de introduzir novas atividades de valor acrescentando mas, para isso, precisamos de ter capacidade para atrair investimento produtivo. Mas para atrair e, como estamos em concorrência, temos de oferecer condições de atratividade adequadas para conseguirmos trazer mais indústria farmacêutica para o nosso país, mais indústria de produção de equipamentos médicos, mais empresas tecnológicas, até para aproveitar uma certa tendência de deslocalização de algumas cadeias de valor no quadro da economia europeia e global. Há uma série de empresas que estão agora localizadas na China e na Índia e que têm tendência para se deslocalizarem para a Europa. Para atrairmos essas empresas temos de ter recursos, competências, uma base produtiva que pode continuar a ser melhorada. Temos de criar condições para não fazermos mais do mesmo. Se queremos mudar temos de ir às causas dessa estagnação e estas radicam nas causas da estagnação da produtividade. Em 1976 optámos por um modelo político-económico europeu. Quem é contra esse modelo? É o PCP e o BE que são anti-economia de mercado, anti-euro, anti-UE. Não estão interessados na tomada de medidas estruturais porque é contra a sua visão ideológica.

A proposta de Orçamento do Estado para o próximo ano é reflexo disso?

Quanto mais o processo de decisão económica portuguesa for influenciado por segmentos políticos que são contra a Europa, contra o euro, contra a economia de mercado, contra a produtividade e competitividade mais o país se atrasa relativamente aos outros. Não há uma boa economia, sem uma boa política. Para ter uma boa política económica, coerente e consistente, tenho de ter soluções governativas estáveis e coerentes ao longo do tempo. Foi assim que os países que eram pobres se transformaram em ricos.

Mas agora não temos essa estabilidade política…

Em democracia nunca há estabilidade total, os partidos que defendem um modelo europeu, uma democracia pluralista, assente na iniciativa privada, no quadro do euro e no quadro da economia global têm a obrigação de se entenderem e que representam 85% do eleitorado nas variáveis estratégicas determinantes, independentemente da conjuntura política, no sentido de conseguirmos uma qualidade de políticas públicas, empresariais adequadas. É a responsabilidade política. O discurso político parece muito influenciado pelos partidos que não querem esta visão estratégica. São partidos que querem mais e mais despesa, mais e mais dívida, mais e mais impostos. O grande capital, que não há, que pague mais impostos. Estamos outra vez numa luta política como tivemos no tempo de Mário Soares, mas ele clarificou qual era o seu caminho e o país progrediu. Agora precisamos de clarificar novamente qual é o caminho e este tem de ser no quadro europeu, de uma burocracia pluralista, com valores. Uma democracia que se quer competitiva e socialmente inclusiva.

Mas para as empresas, a proposta de Orçamento só diz que não vai haver aumento de impostos…

A minha análise é mais estrutural. Faço uma análise sistémica, no sentido de alterar progressivamente a estrutura para termos condições para um crescimento económico mais continuado, uma melhor qualidade da locação de recursos na economia com vista a melhorarmos progressivamente os índices de bem-estar económico e social para as pessoas. Não me ponho na luta diária, ponho-me em termos da perspetiva estrutural e sistémica porque o estado social tem de ser alimentado, tem de ser financiado porque há despesas de educação, saúde e proteção social. O Estado social sem criação de riqueza, mais tarde ou mais cedo, definha. E nós como defensores do Estado social, que é uma conquista civilizacional, temos de impugnar pelo aumento da riqueza do país. Só assim é que podemos destinar mais recursos às tecnologias da saúde, aos sistemas de proteção social para conseguirmos garantir pensões à nova geração. As pessoas têm de interiorizar isso e os agentes políticos, económicos e sociais também.

Em 2016, disse que geringonça estava a funcionar, mas na direção estratégica errada. Essa linha mantém-se?

Claro. Há soluções governativas mais inteligentes e menos inteligentes. Esta solução governativa serviu em determinado momento, vamos ver como vai evoluir o futuro. Quando se fala em reformas podem ser ações estruturais de qualidade ou de fraca qualidade. Qual é a mais adequada? No meio de tantas variáveis e de tantas equações, o objetivo é melhorar a produtividade e a competitividade. Isto é, criar mais riqueza com vista a termos mais recursos para melhorarmos os índices de bem-estar económicos e sociais das pessoas. E contrariarmos as tendências que levaram à estagnação dos últimos 20 anos. Desde 1995, ano em que saí do Governo, que o país fez poucos progressos relativos à aproximação ao nível de vida dos países mais ricos da Europa. É evidente que temos progredido, mas os outros têm progredido mais do que nós.

Mas vamos agora receber a ‘bazuca’ europeia…

Já recebemos muitas ‘bazucas’ nos últimos anos: 135 mil milhões de euros. E agora vamos ter uma solidariedade europeia reforçada e as pessoas têm de ter consciência que, neste momento, não temos outra vez a troika porque o BCE resolveu financiar as dívidas públicas. O BCE está a monitorizar os défices públicos. Como esta crise foi geral, não foi específica do país A, B ou C, flexibilizou a sua política monetária, isto é, está a criar moeda. Ou seja, os Governos têm défices, emitiam dívida e a dívida está garantida porque, em última análise, o BCE compra aos detentores da dívida. Portanto, não há risco, coisa que não aconteceu na crise anterior. Esta é que é a grande ‘bazuca’ que serve para minorar os efeitos adversos sobre as famílias e empresas. A ‘bazuca’ para retomarmos as condições estruturais de crescimento serão os fundos de solidariedade europeia e estes vão-nos dar uma nova oportunidade. E por isso digo que não podemos fazer igual ao que temos feito nos últimos anos. O Partido Socialista governou 80% do tempo nos últimos 25 anos, portanto tem as maiores responsabilidades pelo estado em que o país está, mas todos os partidos políticos têm responsabilidades. E os partidos políticos que defendem o modelo político europeu, nos seus valores, no seu modelo económico – de uma economia de mercado assente na iniciativa empresarial privada que se quer competitiva e socialmente inclusiva – tem especiais obrigações de encontrar soluções governativas no quadro da democracia para que os valores permanentes que afetam a qualidade das políticas públicas e empresariais, independentemente das flutuações de conjuntura política, para que apresente uma linha de rumo e essa linha de rumo é claro que não é defendida pelos partidos que são anti-UE, anti-euro, anti-iniciativa empresarial privada, porque isso é contra a sua visão estratégica e isso representa 15% do eleitorado. Esses 15% do eleitorado não podem mandar no país, mas para isso, há partidos que são fundamentais: o PS e o PSD que no aspeto político têm uma visão estratégica do que é adequado em termos de progresso económico e social do país.

Devia haver uma gerigonça à direita?

Não estou a falar de gerigonças. Estou a falar de soluções governativas. Na Alemanha, quando vem o partido A, B ou C, as políticas são estruturais e permanentes. Em Espanha já há flutuações, o mesmo acontece em Itália. Na Alemanha e nos países nórdicos, nos países desenvolvidos com grande maturidade democrática não mudam de estratégia ao sabor dos ventos, a estratégia tem de ter elementos permanentes, naquilo que é o interesse e estratégico do país no quadro europeu, no quadro da economia global. E é aí que os partidos historicamente que são considerados do arco do poder têm especiais responsabilidades. Não admira que os partidos – o PCP e o BE que foram vencidos ideologicamente, mas que não foram convencidos – procurem influenciar o processo legislativo, as decisões do Orçamento não para reestruturar a despesa pública, mas para aumentar a despesa pública, não para reduzir impostos sobre as empresas, mas para aumentar os impostos sobre as empresas. Portanto, atuam exatamente ao contrário daquilo que é necessário fazer para melhorar os indicadores económicos e logo os indicadores sociais, mas estão de acordo com o seu modelo. E mesmo no PS e no PSD há visões que nem sempre são as corretas, tendo em conta a minha perspetiva que é fundamentada em dados e análises. Há segmentos do PS que compreendem, há segmentos do PSD que compreendem, há segmentos do CDS que compreendem. Não estou à espera que os meus amigos que sejam mais à esquerda do PS concordem com a minha tese que é dentro de um modelo político da economia de mercado no quadro europeu. Mas volto a dizer que não podemos cair na bancarrota como caímos em 1977/78, em 1983/84 e como em 2011/2014. Em 2011 tivemos um AVC, mas os indicadores deste AVC estavam lá: a evolução da despesa pública, a trajetória da dívida pública, a trajetória da dívida externa, a trajetória dos défices externos, os indicadores de competitividade, a perda que quotas de mercado.

Era uma bomba relógio?

Com certeza. Andava a dizer desde 2000 que isto ia bater na parede. Só não sabia era quando. Claro que se atribuiu a responsabilidade à crise, mas antes da crise internacional já íamos bater na parede mais ano, menos ano porque estávamos com políticas erradas.

O que acha do plano de Costa Silva?

Não tive a preocupação de analisar nem as contribuições do PSD, nem dos consultores do PS. O que apercebi pela comunicação social é que há vetores que são comuns à minha visão, outros não são. Mas do que li dos apoios apenas 20 a 30% são destinados às empresas.

A grande maioria vai para as grandes obras públicas…

Isso é fazer mais do mesmo e, é por isso, que defendo que o maior canhão tem de ir para o sistema produtivo. É uma mudança de filosofia, não sei se o programa de Costa Silva tem essa mudança. Prefiro dar ênfase às empresas que são as células base de criação da atividade económica, as fontes de criação de riqueza e de emprego e são determinantes para a criação de riqueza das famílias e do próprio Estado. As empresas têm que estar no centro das políticas, assim como as pessoas, não é o Estado. Não podemos voltar a cair no mesmo caminho, caso contrário corremos o risco de não aproveitarmos a solidariedade europeia para acelerarmos a convergência real. No total, estamos a falar de três instrumentos: o quadro financeiro plurianual 2021/2027, mais o plano de recuperação e resiliência, mais o saldo do Portugal 2020 que dá 50 e tal mil milhões de euros. Recebemos 132 mil milhões de euros entre 1986 e 2018, portanto vamos ter uma ‘pipa de massa’ e agora vamos ter de fazer reformas e aplicar bem. Os investimentos têm de ser bem decididos com base em análises custos/benefício. Mas a primeira grande decisão é política para sabermos onde é que vamos aplicar essa verba.

Uma das grandes apostas é a ferrovia…

Ponho em causa tudo isso, a maior fatia de leão tem de ser virada para as empresas. Claro que é preciso melhorar a ferrovia, mas fazer política é fazer escolhas. É claro que tenho de investir na transição da transformação digital ativa e na transição ecológica. Mas tudo isto tem de ser bem avaliado. Governar é fazer opções e o que digo é que as opções do passado não têm sido adequadas e, por isso, não posso fazer no futuro o mesmo tipo de opções. Mas tudo isso está relacionado com a estratégia do poder político e neste momento está muito influenciada pelos partidos de esquerda. Tenho esperança que este ambiente mude no sentido de encontrarmos novos caminhos.

Defende eleições antecipadas?

O problema está em criar condições. É preciso um novo contrato social, não tem de ser por escrito, entre as grandes forças políticas que defendem este modelo, independentemente da luta política. O que falta é haver uma convergência estratégica das forças políticas que representam 85% do eleitorado no sentido de ter uma direção estratégica correta para a economia e para a sociedade portuguesa.

E em relação à EDP. Como vê o processo? Chegou a afirmar que não tem fundamento…

Isso liga-se com o tal ponto fraco estrutural que falei ao início. Um país que tenha um bom sistema de Justiça e um combate contra a corrupção eficiente não pode ser admissível que esteja cinco ou seis anos numa fase pré-condenatória, a partir de uma acusação anónima.

Mas entretanto, dois administradores foram afastados…

Sim. Mas a EDP é uma empresa bem organizada, que tem uma estratégia, sabe onde está e para onde quer ir e felizmente não depende da pessoa A ou da pessoa B. E verifica-se que a empresa ultrapassou os impactos no mercado. Claro que os investidores não percebem como é que isto tudo funciona em Portugal. Não percebem porque é que é preciso cinco anos para investigar factos que aliás já foram investigados pela União Europeia e que concluiu que esses factos não têm qualquer base técnica fundamentada.

Está a falar das rendas excessivas?

De tudo. A queixa apresentada em Portugal foi exatamente igual à queixa que foi apresentada em Bruxelas. Bruxelas investigou e chegou a uma conclusão e essas decisões foram publicadas. Um dia os tribunais portugueses também chegarão à mesma conclusão. Não é admissível estar meia dúzia de anos num processo sem existir uma acusação. Parece que a função objetiva é acusar em vez de investigar. Isso não é admissível, seja o processo EDP, seja outro processo.