Garrincha. ‘Tudo bem seu gustavo?’

Foi aqui, na Suécia, em Gotemburgo, que há 62 anos, a Europa descobriu Garrincha (bastaram 3 minutos) – que deixou por cá um filho chamado Ulf.

Gabriel Hanot, um dos grandes mestres do L’Équipe, chamou-lhe «os mais extraordinários três minutos do futebol do mundo». Dia 15 de junho de 1958: Brasil-União Soviética. Terceiro jogo do Grupo 4 da fase final do Campeonato do Mundo, no Estádio Nye Ullevi, em Gotemburgo. O Brasil vencera a Áustria por 3-0 e empatara a zero com a Inglaterra (primeiro jogo de uma fase final de um Mundial a terminar sem golos) e não jogava um futebol por aí além. O selecionador Vicente Feola teimava em manter no banco Mané Garrincha e Pelé, mesmo contra a vontade do povão, que lá longe, no Brasil, sabia muito bem o que valiam, ao contrário do que se passava na Europa, onde eram ambos quase desconhecidos. A equipa brasileira partira para a Suécia com uma entourage tão profissional que não deixava nada ao acaso e, por isso, dispunha de um psicólogo para ir traçando os perfis dos jogadores. A derrota de 1950, no Maracanã frente ao Uruguai, perante mais de 200 mil pessoas, e a eliminação dura face à Hungria, em 1954, na Suíça, tinham de ser deixadas definitivamente nas catacumbas do esquecimento. O Brasil não podia ser apenas dono do futebol mais bonito do mundo como tinha de o fazer equivaler e superiorizar à fortes seleções europeias.

João Carvalhaes era o tal psicólogo que trabalhava no apoio ao médico Hilton Gosling. O perfil que entregou a Vicente Feola sobre Pelé era arrasador – «absolutamente infantil, incapaz de assumir responsabilidades e de arcar com tarefas que exijam da sua capacidade de discernimento». Não se estranhava por ser o perfil psicológico de um garoto de 17 anos. Mas estava profundamente errado, como se viu. Já no que toca a Garrincha, Carvalhaes foi ainda mais cáustico e alegou que estávamos perante um homem com preocupantes deficiências mentais.

 

Magia do drible

Vicente Feola decidiu que ia manter ambos no banco. Não estava convencido de que pudessem marcar a diferença. Em relação a Garrincha, as coisas complicaram ainda em Itália, onde o Brasil fez o estágio de preparação. Num jogo amigável contra a Fiorentina, Garrincha fintou quatro adversários, isolou-se frente ao guarda-redes Sarti e dobrou-o igualmente com uma ginga de corpo. O problema é que, em vez de chutar a bola para a baliza vazia, resolveu voltar para trás, fintar Sarti outra vez e, aí sim, marcar o golo. Feola fumegou pelos ouvidos: «Irresponsável de pai e mãe!». Ficaria de fora.

Na véspera de defrontar a União Soviética, que empatara 2-2 com a Inglaterra e batera a Áustria por 2-0, apresentando um mítico futebol-científico que, comentava-se nos bastidores, fora preparado em laboratório para desfazer os adversários com uma exploração matemática dos seus pontos fracos, Vicente Feola deixou-se influenciar pela opinião pública brasileira. Em boa hora o fez. Garrincha e Pelé surgiram em campo como titulares. E o que aconteceu nos primeiros três minutos desse encontro ficou para sempre para a história do futebol e, mais tarde, para a lenda.

Ruy de Castro, na sua biografia sobre Garrincha, A Estrela Solitária, desenhava o ambiente vivido antes desse jogo decisivo para conduzir os brasileiros para os quartos-de-final: «Dizia-se que, em dia de jogo, eles faziam quatro horas de ginástica pela manhã. Dizia-se também que a KGB espalhara espiões pelo mundo, filmando partidas, e que seus computadores – então chamados ‘cérebros eletrónicos’ – haviam produzido um sistema perfeito para derrotar qualquer equipe».

Pois seu Mané Garrincha, nascido em Magé com o nome de Manoel Francisco dos Santos, no dia 28 de outubro de 1933, esteve-se absolutamente nas tintas para o futebol científico dos russos. E Nelson Rodrigues, o maior cronista de futebol de sempre, fez-lhe justiça: «Didi centra rápido para a direita: 15 segundos de jogo. Garrincha escora a bola com o peito do pé: 20 segundos. Kuznetzov parte sobre ele, Garrincha faz que vai para a esquerda, não vai, sai pela direita. Kuznetzov cai: 25 segundos. Garrincha dá outro drible em Kuznetzov: 27 segundos. Mais outro: 30 segundos. Outro. Todo o estádio levanta-se. Kuznetzov está sentado, espantado: 32 segundos. Garrincha parte para a linha de fundo. Kuznetzov arremete outra vez, agora ajudado por Voinov e Krijveski: 34 segundos. Garrincha faz assim com a perna. Puxa a bola para cá, para lá e sai de novo pela direita. Os três russos estão esparramados na grama, Voinov com o assento empinado para o céu. O estádio estoura de riso: 38 segundos. Garrincha chuta violentamente, cruzado, sem ângulo. A bola explode no poste esquerdo da baliza de Iashin. E sai pela linha de fundo: 40 segundos. Garrincha avança com a bola. Kuznetzov cai novamente. Didi pede a bola: 45 segundos. Chuta de curva, com a parte de dentro do pé. A bola faz a volta ao lado de Igor Netto e cai nos pés de Pelé. Pelé dá a Vavá: 48 segundos. Vavá a Didi, a Garrincha, outra vez a Pelé, Pelé chuta, a bola bate no travessão e sobe: 55 segundos. O ritmo do time é alucinante. É a cadência de Garrincha. A avalanche continua. Segundo após segundo, Garrincha dizima os russos. A histeria domina o estádio. E a explosão vem com o gol de Vavá, exatamente aos três minutos».

Foi com esse futebol todo que o Brasil bateu a Suécia na final (5-2) e ganhou o seu primeiro mundial. Carvalhaes avisou Garrincha que o Rei da Suécia iria cumprimentar os jogadores no relvado e pediu-lhe para ser delicado. Mané foi, mas ao seu jeito: «Tudo bem seu Gustavo?».