O lugar da melancólica monotonia

Gunnar Gren, o GRE do GRE-NO-LI do Milan e da seleção sueca, morreu sem que houvesse alguém a sentir a sua falta.

Oddevold é um clubezinho sueco da cidade de Uddevalla, na província de Vëstra Götaland, no norte do país, conhecida pelas suas conchas espalhadas por praias taciturnas. A sua camisola é azul, com mangas brancas: foi a última camisola que Gunnar Gren vestiu, durante alguns minutos de um jogo de despedida, em 1976, já com 56 anos. Depois sentou-se no banco e foi treinador do Oddevold um par de meses. Nessa fase da sua vida andava um bocado inquieto. De tal ordem que foi sendo o responsável técnico por outros clubezinhos como o IFK Värnamo, o Redbergslids, o Skogens e o Fässbergs. Qualquer coisa lhe servia desde que continuasse a cheirar a relva e o couro da bola. Logo ele que já se tinha despedido do futebol por duas vezes. Primeiro em 1957, no Örgryte, pelo qual só fez quatro jogos, e em 1964, quando decidiu completar uma época ao serviço doGAIS, o Göteborgs Atlet-och Idrottssällskap, participando em 22 jogos e marcando dois golos.

Gren era o GRE do GRE-NO-LI, a famosa linha avançada do Milan e da seleção da Suécia do final dos anos 40 e 50, Gren-Norddhal-Liedholm. Foram campeões olímpicos, chegaram à final do Campeonato do Mundo de 1958, jogada no Estádio Rasunda, em Solna, nos subúrbios de Estocolmo. Foram mágicos porque a Suécia é um lugar de nomes mágicos. Quando voava sobre Västrä Götaland às costas do ganso branco que seguia os patos bravos comandados por Akka de Kebnekaise, Nils Holgersson, reduzido ao tamanho de um polegar por castigo de um gnomo, via lá do alto os grandes bosques da melancólica monotonia, os riachos estreitos, aqui e ali uma terra por cultivar, casinhas baixas, sem chaminés. Melancólica monotonia:  aqui que eu queria chegar.

A luta de Gunnar Gren foi sempre contra a melancólica monotonia. Filho de um carpinteiro, cresceu no bairro de Majorna, um dos 21 bairros de Gotemburgo e aos 13 anos já não enganava ninguém quando surgiu no ataque do Bollklubben Strix. Era bom! Era mesmo bom! Corria, driblava, passava com a medida certa e fazia golos do nada. Chegou à IDivisão sueca com o Garda BK em 1837; três anos depois estava no IFK Gotemburgo. Ficou oito anos. Depois, a Itália chamou-o com a voz serena de uma ondina do Báltico.

Gunnar Gren levou a sua inquietação para Milão em 1949. Tinha acabado de vencer o torneio de futebol dos Jogos Olímpicos de Londres, juntou-se aos seus dois compatriotas, Nils Liedholm e Gunnar Nordhal, todo o mundo do futebol aprendeu o seu nome e reconhecia a sua figura meio atarracada, quase careca, e o seu estilo repentista, resistente, misturando a técnica com a força de um tronco de bétula branca do país onde nascera.

Gren ainda jogou na Fiorentina e no Génova. Fartou-se de Itália, ao contrário do seu camarada Liedholm que ficou lá a viver para sempre, e regressou à Suécia. A magia dos nomes bailava-lhe na cabeça. Assinou um contrato pelo Örgryte. Estava de volta a casa. Também ele voava para o norte, cada vez mais para o norte, tal como os patos bravos em formação em V e um pata velha na frente com o nome da montanha mais alta da Suécia: Kebnekaise.
Em Itália deram-lhe uma alcunha respeitosa: Il Professore. Gren continuava a trocar de camisola como quem troca de camisa, se é que o anexim calha aqui a preceito. Gotemburgo (1960) foi o clube seguinte. No Örgryte acumulara o lugar de avançado com o trabalho de treinador. Andava confuso. Queria jogar mas, ao mesmo tempo, sentia que já não era capaz de ser o Gren que sempre fora. A melancolia atacou cobardemente pelas frinchas da sua fragilidade. Durante três anos desapareceu.
Em 1963, estava de volta. Jogou um ano noGAIS, depois outro no IFK Värnamo, e outro ainda no Redbergslids. Transformara-se num fantasma.

«Ah quanta melancolia! / Quanta, quanta solidão! /Aquela alma, que vazia/Que sinto inútil e fria/Dentro do meu coração!», escreveu Fernando Pessoa. A melancólica monotonia tomara conta do coração de Gren, ele que fora um folgazão na sua juventude. Fechou-se em casa. Muito raramente saía para caminhar à sombra dos pinheiros.
A Suécia é um lugar de nomes mágicos e de uma nostalgia intensa. A nostalgia que sobe por dentro de nós quando estamos naquele preciso local onde o Uppland encontra a Sudermânia, o Malar e o Báltico, e onde surge um rio muito pequeno que reúne as duas águas, as do lago e as do mar: é aqui que estou. A melancolia matou Gunnar Gren dez dias depois de ter concluído 71 anos. Só seis meses mais tarde é que encontraram o seu corpo na casa vazia em que vivia. Ninguém sentira a sua falta. E ele perdido na monotonia dos dias infinitos… 

afonso.melo@newsplex.pt