Quando são as crianças que ditam as regras

Alguns pais desresponsabilizam-se de uma das suas maiores tarefas: a de educar, guiar, impor limites. Como se as crianças tivessem maturidade suficiente para decidir acerca de tudo

Um dia destes, ao almoço, ouvi uma mãe dizer à filha de três ou quatro anos: ‘Tu queres saber escrever o nome como a tua amiga, mas de certeza que quando ela chega a casa da escola não fica agarrada ao telefone ou ao iPad como tu’. A miúda ficou calada. E eu pensativa.

Que responsabilidade pode ter uma criança daquela idade na forma como ocupa o tempo? Em princípio, se usa tais aparelhos é porque alguém maior e responsável – supostamente – lhos apresentou e lhe permite usá-los. Ou serão dela? Também é possível. Nesta matéria, já nada me surpreende mas, ainda assim, alguém lhos terá oferecido e lhe permite usá-los.

Alguns pais desresponsabilizam-se de uma das suas maiores tarefas: a de educar, guiar, impor limites. E mesmo cuidar. Como se as crianças tivessem maturidade suficiente para decidir acerca de tudo. Há pais que não dão banho aos filhos com a regularidade necessária ou não os penteiam porque eles não gostam, porque o cabelo está cheio de nós e os faz chorar. Ou não lhes põem soro porque os incomoda, como se pudessem ficar traumatizados. No outro dia, uma amiga contava-me que o sobrinho – que tem agora três anos – continua a andar sempre de pijama, porque chora quando tentam vesti-lo, e os pais não insistem. Mas é um bebé de um ano que sabe o que é melhor para ele? Não tem esse bebé o direito de crescer no seio de uma família sensata que saiba cuidar dele e fazer por ele o que é melhor, mesmo que isso na altura lhe possa causar incómodo?

Há matérias que são negociáveis, outras em que os mais novos podem mesmo decidir. Mas há também aquelas em que a decisão cabe somente aos pais.

Em situações destas em que são os mais novos que sentem que querem, podem e mandam, e há uma demissão dos pais nesse sentido, não só pode haver o descurar de cuidados essenciais como o desenvolvimento da criança será feito num sentido prejudicial, contribuindo para o sentimento de omnipotência e persistência de um narcisismo infantil. Em vez de a criança crescer num ambiente seguro e contentor, em que os pais ditam as regras e a guiam, é a criança que sente que controla os pais, é ela a detentora do poder.

Vemos o resultado em crianças que maltratam os pais desde pequenas, que são muitas vezes agressivas para eles sem que haja alguma resposta de defesa ou zanga da outra parte, apenas de permissão, o que legitima este lugar. Mais tarde poderão ser aquelas pessoas que só olham para o seu umbigo, que não admitem ser contrariadas, que se sentem no centro do mundo – no fundo, onde sempre foram colocadas.

Ser pai tem esse papel ingrato de por vezes termos de decidir aquilo que sabemos ser o melhor para os nossos filhos, mesmo que na altura lhes pareça o contrário, mesmo que chorem e façam birras. Talvez um dia compreendam e venham a agradecer-nos. Ou talvez não, mas nós saberemos que cumprimos o nosso papel.