Parecer do Colégio de Medicina Intensiva: É preciso planear para evitar racionamento de cuidados intensivos

Presidente do Colégio de Medicina Intensiva da Ordem dos Médicos avisa que já foi atingido o limite tanto nas camas reservadas à covid-19 como para os outros casos. Para não ter de priorizar doentes críticos, há que planear e suspender atividade programada não prioritária a nível nacional, defende.

“Face a uma pandemia, o dever de planear é prioritário. O não planeamento em situações de previsível escassez de recursos pode levar a ineficiência e desperdício dos mesmos, perda evitável de vidas e uso de estratégias de priorização e racionamento, de outro modo desnecessárias”. O alerta surge num parecer do Colégio de Medicina Intensiva da Ordem dos Médicos, a que o i teve acesso, e que traça um conjunto de recomendações para a gestão da pandemia ao longo dos próximos meses. Apesar das medidas recentemente tomadas de contenção e mitigação da pandemia, os intensivistas advertem que o país enfrenta um cenário em que “durante muitos meses” será necessário compatibilizar a admissão de doentes em cuidados intensivos com as patologias tradicionais e dos doentes com covid-19, e admitem que o aumento da procura possa levar a dificuldades na disponibilidade de recursos, “colocando os intensivistas em cenários de grande complexidade ética”. Consideram que um racionamento de cuidados ou priorização de doentes só será admissível se tudo tiver sido feito para maximizar a capacidade de resposta, “em número e qualidade”, das camas de medicina intensiva e estabelecem os princípios gerais a que deve atender a resposta, desde os critérios que devem ser tidos em conta para ponderar a admissão de doentes em unidades de cuidados intensivos – seguindo-se o princípio de “máxima beneficência” – à preocupação de evitar uma política de “quem chega primeiro é servido primeiro” e à necessidade de garantir a mesma acessibilidade tanto a doentes críticos com covid como a doentes críticos com outras patologias que não covid.

 

Priorização não pode chegar aos doentes críticos

Ao i, José Artur Paiva, presidente do Colégio de Medicina Intensiva da Ordem dos Médicos, sublinha que neste momento não chegou à ordem qualquer relato de racionamento de cuidados intensivos no país e que o objetivo do parecer é garantir que não existe ao longo dos próximos meses “uma disparidade entre os cuidados necessários e os cuidados oferecidos aos doentes”. Este cenário tem vindo a preocupar mais os médicos a cada semana que passa, tendo em conta que todo o inverno está ainda pela frente: o médico explica que neste momento existem 589 camas de UCI dedicadas a doentes com covid-19, das quais 498 estão ocupadas. Ao todo, o país dispõe atualmente de 1065 camas de cuidados intensivos – já um aumento em relação às que estavam disponíveis na primeira vaga –, mas nas 476 que estão disponíveis para casos não covid-19 verifica-se já uma ocupação de 85%, diz José Artur Paiva, que dirige o Serviço de Medicina Intensiva do Hospital de São João.

“Na nossa opinião, não é boa ideia e é inseguro reduzir as camas de UCI para não covid-19 além do número atual”, sublinha o médico, considerando que, atingido o que é considerado o limite de segurança em cuidados intensivos (quando estão ocupadas 85% das camas disponíveis, torna-se reduzida a folga para admitir doentes críticos em urgência), é necessário reforçar a articulação a nível regional e suspender temporariamente a atividade programada não prioritária para que alas e equipas dedicadas a cirurgia possam ser usadas para expandir as camas de cuidados intensivos sem prejudicar a resposta a doentes agudos críticos. “O nosso compromisso, e não podemos desistir desse compromisso, é garantir acessibilidade a medicina intensiva a doentes com covid 19 e não covid. E para isso é muito importante não reduzir as camas para não covid-19 abaixo de um determinado valor que garanta essa acessibilidade. Estamos nesse valor”, alerta o médico.

 

Não serão dois meses como na primeira vaga

José Artur Paiva sublinha que, ao contrário do que aconteceu nos primeiros meses da pandemia, não se pode abandonar a restante atividade não covid-19, porque agora não serão dois meses de pandemia mas, previsivelmente, todo o outono e inverno, defendendo que a preocupação no imediato deve ser adiar atividade não prioritária em que o adiamento não afeta o resultado/prognóstico dos doentes. “Um cidadão que tiver uma ciática ou uma hérnia inguinal que não afete muito a sua situação pode esperar um bocadinho. Esta é a priorização que deve ser feita, não a priorização entre duas pessoas que precisem de cuidados críticos”. Estas medidas devem surgir a par de um maior planeamento das admissões em UCI, acrescenta, com as transferências “profiláticas” para hospitais menos sobrecarregados de doentes que se prevê possam vir a entrar em falência orgânica quando os hospitais onde estão internados tiverem poucas vagas, de forma a prevenir transferências em situações-limite, em que a própria deslocação dos doentes pode ser mais difícil ou impossível face ao seu estado clínico.

“Em vez de decidir isto às três da manhã, é possível planear estas transferências de forma programada. Finalmente começámos a ter este tipo de transferências no último fim de semana, entre o Norte e a região Centro, e é uma metodologia adequada a seguir. No Norte temos tido ocupações superiores a 90%, o que não aconteceu nas últimas semanas nas outras regiões. Ninguém entenderia que o cidadão, por viver na área de maior incidência da doença, tem menor acesso do que pessoas noutros pontos do país. Temos de garantir que o cidadão que precisa de medicina intensiva não tem de esperar para a receber e, ao mesmo tempo, que os profissionais de saúde não precisam de ficar sobrecarregados se há capacidade noutra região”, reforça o médico, acrescentando que essa foi uma das aprendizagens na primeira vaga da epidemia. “Sabemos hoje que o índice de acessibilidade a medicina intensiva e a sobrecarga dos profissionais são um fortíssimo determinante da taxa de letalidade. Não ter acesso ou ter um acesso complicado a medicina intensiva pode levar a um aumento da letalidade”, diz o médico.

 O parecer do Colégio de Medicina Intensiva, datado de 20 de novembro, sucede a um primeiro parecer do Conselho Nacional de Ética e Deontologia Médicas da Ordem dos Médicos, que emitiu há duas semanas orientações éticas ao médicos perante uma segunda vaga com maior pressão sobre os cuidados de saúde do que a primeira.

Além de alertar para o dever de planear a resposta de coordenação a nível regional, sublinha a importância de uma criteriosa admissão de doentes em cuidados intensivos, mediante o princípio da “máxima beneficência”, em que devem ser ponderados quatro critérios fundamentais: a gravidade da doença aguda, a reversibilidade da situação, presença prévia de comorbilidades e o estado funcional e fragilidade dos doentes – aspetos que devem ser sempre tidos em conta, esteja-se ou não em pandemia, reforça José Artur Paiva.

 

Idade por si só não é critério

“Já tivemos um doente com mais de 100 anos em UCI” A idade, embora se relacione com a probabilidade de existência de comorbilidades e com o estado funcional, não é critério a utilizar, por si só, nesta avaliação”, reiteram os médicos, uma consideração que já tinha sido expressa pelo Conselho de Ética. “A operacionalização desta recomendação significa que pessoas que estão doentes e podem recuperar para uma vida normal devem ser priorizadas sobre outras em que a probabilidade de recuperação é muito baixa mesmo se tratadas em medicina intensiva, e também outras em que seja considerado muito provável que recuperem com tratamento fora da medicina intensiva (em nível 1 de cuidados ou em enfermaria), evitando assim cuidados que não adicionam ou pouco adicionam valor em saúde”, refere o parecer de medicina intensiva, onde pode ler-se também que a boa aplicação desta recomendação reduzirá a “necessidade de interrupção de cuidados, mas esta é imperativa na dimensão individual, omitindo tratamentos fúteis e evitando o encarniçamento terapêutico, ou num contexto de catástrofe, orientado por critérios de justiça relativa”.

José Artur Paiva sublinha que a preocupação deve ser sempre os melhores cuidados ao doente e utilização dos recursos, sublinhando que, no caso da idade, no seu hospital, o São João, já tiveram um doente com covid-19 com mais de 100 anos em UCI. “Acima de 100 anos são situações mais raras mas, neste momento, temos várias pessoas entre os 80 e 90 anos internadas no serviço, pessoas numa fase geriátrica mas com boa reserva fisiológica e boa qualidade de vida”.

O parecer recomenda que a decisão de admissão em medicina intensiva deve basear-se, sempre que possível, numa decisão partilhada com doentes e familiares e numa decisão colegial, chamando a atenção para que “só a total transparência poderá manter a confiança do cidadão no sistema de saúde.” Os médicos advertem para o dever de equidade, garantir que não vigora uma política de que “quem chega primeiro, primeiro é servido” e que a decisão de não admissão em medicina intensiva ou de não encarniçamento terapêutico “nunca pode ser confundida com abandono”, salientando que não ir para cuidados intensivos não implica não ter acesso a ventilação mecânica não invasiva ou a oxigénio e que cada decisão deve ser ponderada de acordo com o melhor interesse global de cada doente.

Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, sublinha que o parecer do Colégio de Medicina Intensiva vem dar um suporte aos médicos num momento em que enfrentam uma pressão crescente nos hospitais e que o planeamento é essencial, reiterando que na fase em que o país se encontra é necessário envolver todos os recursos disponíveis no país, para não deixar doentes para trás, considerando preocupantes as ocupações de UCI a nível nacional. “Quando se diz que há mais 300 camas, é preciso perceber que também existem doentes não covid que não podem ser deixados para trás”.