Nas vésperas da presidência portuguesa, a UE entre a China e os Estados Unidos

Num tempo de escalada Estados Unidos-China, em termos político-económicos, é muito importante a posição da Europa. Até agora, o estilo unilateral de Trump e a sua pouca afeição às actuações diplomáticas multilaterais, tinham servido de desculpa também aos europeus, para se esquivarem. Mas, entretanto, e também muito em função da pandemia, foram tomando posições mais…

por M. S. Araújo

A Administração Biden – se as contagens e litígios em curso o confirmarem como presidente e o Colégio Eleitoral o ratificar a 14 de Dezembro – não mudará substancialmente a política externa norte-americana. Mas mudará a retórica, e o estilo desta política e alguma agenda: por exemplo, não pode deixar de o fazer para contentar a esquerda do Partido, na questão do clima, onde Biden colocou o seu companheiro da Administração Obama e símbolo do velho Establishment Costa Leste, John Kerry; mudará também na retórica em relação à Europa e à NATO, embora seja adquirido que os contribuintes norte-americanos, eleitores de Trump ou de Biden, não vão mais querer pagar sozinhos a defesa dos Europeus.

Fizeram-no na Guerra Fria, quando havia uma União Soviética agressiva às portas da Europa, Europa essa que era essencial num quadro bipolar para os interesses dos Estados Unidos. Agora isso mudou e ninguém com senso comum irá comparar a União Soviética e o perigo comunista à Rússia pós-soviética de Putin.

Um ponto em que Democratas e Republicanos estiveram de acordo durante a campanha (aliás Trump e Biden acusaram-se mutuamente de serem “o candidato de Pequim”) foi na necessidade de vigilância, cuidado e contenção da China. Prova disso foram também as recentes iniciativas e votações bipartidárias, no Congresso, para o fornecimento de armamento a Taiwan, bem como declarações – inclusive da ala esquerda democrática, do Senador Sanders e de Kamala Harris – no sentido, o primeiro, de que os Estados Unidos deviam intervir na defesa de Taiwan, caso houvesse uma acção militar do Continente. Kamala Harris sublinhou que, ao contrário do unilateralismo de Trump na relação com a China, os Estados Unidos deveriam antes procurar uma “aliança das democracias”, europeias e asiáticas. Quanto a Biden, tem um currículo impressionante de apoio a Taiwan: estava no Senado em 1979, quando foi aprovado o Taiwan Relations Act; quando foi eleito presidente da Comissão de Relações Externas do Senado, em 2001, foi Taiwan o primeiro país que visitou. E em Janeiro deste ano, já na qualidade de candidato à nomeação pelo Partido Democrata, enviou uma mensagem à Presidente Tsai Ing-Wen, então reeleita, com as seguintes palavras:

“Sois mais fortes porque sois uma sociedade livre e aberta. Os Estados Unidos devem continuar a fortalecer as relações com Taiwan e outras democracias semelhantes”. Além disso, na equipa de conselheiros de Biden há um grupo de significativos amigos e conhecedores de Taiwan.

Por isso, em termos de posição norte-americana, a retórica poderá ser mais grave, mas o fundo da questão é o mesmo. E a Europa, a União Europeia? Há alguma atenção e especulação à volta das posições dos países europeus e da própria União Europeia ao aproximar-se a passagem da presidência alemã para a presidência portuguesa.

Na realidade a posição alemã em relação à China parece ter sido condicionada pela importância do mercado chinês.  Segundo o site Político, em 2018, a Alemanha vendeu para a China, 106 mil milhões de dólares em bens e serviços, praticamente mais que as exportações somadas, nesse ano, para a China, da França, da Holanda, da Irlanda, da Suécia e da Espanha.

Se compararmos, no mesmo período, o número de vendas de automóveis alemães na China – 4.200.000 – com o número dos mesmos veículos alemães nos Estados Unidos – 350.000 – pode perceber-se o dilema alemão e europeu, entre o lucro e o interesse, e a defesa, pela Alemanha e pela União Europeia, dos direitos humanos em Hong-Kong e em relação aos Uighurs, uma atitude cautelosa, apesar de no Parlamento Europeu terem surgido pedidos de reacção.

Compreende-se que, num tempo de escalada Estados Unidos-China, em termos político-económicos, é muito importante a posição da Europa. Até agora, o estilo unilateral de Trump e a sua pouca afeição às actuações diplomáticas multilaterais, tinham servido de desculpa também aos europeus, para se esquivarem. Mas, entretanto, e também muito em função da pandemia, foram tomando posições mais renitentes em relação a Pequim, nomeadamente na Cimeira de 22 de Junho, em que se viu que as questões de Hong-Kong, com as novas leis de controlo interno, dos direitos humanos e da cibersegurança revelaram. O mesmo quanto a outros dossiers sensíveis – Clima e “global governance” – onde tudo se tem ficado pela retórica, que se traduziu nos comunicados finais das duas delegações.

A conclusão é que a Covid-19 e o progressivo endurecimento interno do Regime chinês causaram uma mudança de sentimentos na Europa em relação à percepção da China que, agora, a nível da opinião pública de países como a França, a Alemanha e o Reino Unido, é de que o governo chinês tem uma influência negativa no mundo.

Esta atitude em relação à China reflectiu-se na evolução dos investimentos chineses na Europa: florescentes no rescaldo da crise de 2008-2010, quando empresas públicas chinesas adquiriram, a bom preço, muitas companhias e posições accionistas, especialmente na Europa do Sul. Mas hoje, a participação do investimento directo chinês no mercado europeu de empresas cotadas anda, em média, pelos 3%.

A atitude é agora muito mais cautelosa e esta prudência cresceu na medida em que o regime chinês se tornou mais autoritário. A linha mais dura de Trump – acompanhado aí por um bipartidarismo do Congresso, impondo sanções à China – também acabou por influenciar Berlim e Bruxelas.

A questão que alguns se começam a pôr é se, com as alterações trazidas por uma possível Administração Biden – mais colaboração diplomática e concertação com os aliados europeus em relação a Pequim – qual vai ser a política a seguir pela EU? E aí entra em linha de conta, como entrou no modo como Merkel e a Alemanha procuraram, em nome dos interesses económicos e da exportação para a China, moderar e dulcificar as posições políticas.

A pergunta é se, dada a grande presença e influência dos interesses económicos chineses em Portugal, a Presidência portuguesa não procurará uma linha de apaziguamento e tolerância na relação dos 27 com a China e os Estados Unidos.

Ainda é cedo para ver, mas é uma questão importante para a Europa e o Mundo, mas também para Portugal e os Portugueses.