Nas mãos de Deus

Ele, mais dez argentinos em campo, ganhou um campeonato do mundo, com a ajuda da ‘mão de Deus’ – como ele disse quando a mão foi a dele. Ele, mais dez jogadores medianos, conquistou o Calcio para o Nápoles. Ele, com uma bola, fazia magia. Contra quem quer que seja. Ou mesmo sozinho.

Esta foi uma semana de enorme infortúnio neste ano já tão negro.

Diego Armando Maradona, para muitos, terá sido o melhor jogador de futebol de todos os tempos.

Ele, mais dez argentinos em campo, ganhou um campeonato do mundo, com a ajuda da ‘mão de Deus’ – como ele disse quando a mão foi a dele. Ele, mais dez jogadores medianos, conquistou o Calcio para o Nápoles. Ele, com uma bola, fazia magia. Contra quem quer que seja. Ou mesmo sozinho.

É ir à internet e vê-lo jogar, desde miúdo, tanto em campos de peladinhas a brincar como nos das competições oficiais, com a camisola da seleção da Argentina ou as dos clubes por onde passou.

Leonel Messi e Cristiano Ronaldo vieram muito depois dele. Assim como Pelé e Eusébio tiveram os seus tempos áureos muito antes dele. Os cinco são, com certeza, os melhores de sempre.

Mas ele, Maradona, marcou a geração de miúdos que foi a minha.

Nos anos 80 do século passado, no prédio dos Olivais Sul, em Lisboa, que era na zona conhecido por ‘prédio dos juízes’ – como havia o ‘dos militares’ , do outro lado da avenida, ou o ‘dos professores’, ali mesmo ao lado – do r/c ao 8.º andar, divididos por esquerdo, frente e direito, contavam-se mais de meia centena de miúdos, filhos de magistrados judiciais e do Ministério Público.

Naquele tempo, antes mesmo de aparecer a primeira consola ou microcomputador (o rudimentar Zx Spectrum da Sinclair chegaria lá para meados dos anos 80), os miúdos viviam numa liberdade inimaginável para a criançada dos dias de hoje, com ou sem pandemia.

Fechado no quarto só se ficava quando se estava doente ou… de castigo.

De resto, era escola, chegar a casa, comer, fazer os trabalhos à pressa e ala para a rua antes que se fizesse tarde.

Andar de bicicleta ou de carrinho de esferas (rolamentos) eram diversões. A maior, porém, era jogar à bola nos enormes relvados interditos dos Olivais (na altura a proibição de jogar nos jardins públicos era levada à risca pelos polícias – porque a verdade é que os relvados estavam pejados de miúdos em saudáveis correrias).

Prédio contra prédio, prédio contra bairro, o jogo só acabava quando a bola ia para a estrada e rebentava com estrondo esmagada pelo rodado do autocarro cujo motorista parecia ter gozo em pôr cobro à brincadeira da pequenada e da juventude ou por causa dos polícias ou dos ladrões.

Não, não era por causa desse jogo que dava pelo nome de ‘polícias e ladrões’, porque ninguém trocava um desafio de futebol por aquela espécie de apanhada coletiva.

Era mesmo por causa dos ladrões: que se colocavam estrategicamente muito atrás das balizas à espera de um remate mais forte e fora do alcance do guarda-redes para pegar na bola e dar ‘às de Vila Diogo’.

E por causa dos polícias: quando chegava o ‘creme nívea’ (carro azul com POLÍCIA escrito a letras brancas) e de lá saíam os agentes que apreendiam a bola e levavam os gaiatos que conseguiam agarrar (quase sempre, nenhum) para a esquadra que ficava para lá do Pão de Açúcar.

Naquele tempo, lá no prédio, só havia uma bola de ‘cautchú’. Se rebentava na estrada, desaparecia às mãos de um paciente larápio ou era apreendida por zelosos agentes da autoridade defensores da integridade dos espaços verdes da freguesia, acabava o jogo. Fazia-se uma recolha de donativos, escada acima e escada abaixo até dar para nova bola, ou esperava-se que alguém recebesse uma como presente de aniversário ou coisa do género para se retomar a temporada. Era assim.

Lá no prédio, todos jogavam à bola. João era o nome mais comum. E, por isso, havia o João do r/c (que passou a João do 4.º quando a família se mudou para o 4.º Frente), o João do 1.º, o João do 2.º, o João do 3.º (meu Irmão), o João do 5.º, o João do 6.º (que saiu pouco depois de nós chegarmos), o João do 7.º e o João do 8.º.

O João do 2.º tinha a minha idade, uns meses mais velho. Conheci-o na Vagueira, praia do distrito de Aveiro, quando os Pais, amigos dos meus, nos foram visitar nas férias grandes. Eram dos arredores. Tínhamos nem seis anos.

Voltei a encontrá-los uns anos mais tarde, quando a minha Professora de Português do 2.º ano (hoje 6.º ano de escolaridade) se fez acompanhar dos dois filhos, e suas violas, numa das aulas de final de período no Ciclo Preparatório de Vila Franca de Xira.

Seríamos vizinhos do mesmo prédio pouco tempo depois, a partir de 1979, quando meu Pai foi colocado no Tribunal da Boa-Hora e a nossa Família se fixou finalmente em Lisboa, percorrido Portugal de lés a lés, de Portimão a Valpaços, passando até pela Ponta do Sol, na Madeira.

Eles também andaram de terra em terra, de comarca em comarca, até aos Olivais.

E muito joguei eu à bola com o meu Amigo João do 2.º.

Esta semana, recebi com dor a notícia de que o João também partiu, na véspera de Maradona. Seis anos mais novo, sem vícios nem excessos.

Que ano injusto e horrível este de 2020!