Marcelo e ‘O primeiro combate’ do líder Sá Carneiro

Marcelo Rebelo de Sousa recorda ‘um dos Pais Civis da Democracia em Portugal’, no prefácio do livro Sá Carneiro e a Ala Liberal, o primeiro de ‘sete livros de escritos e de discursos que reunem o pensamento e a ação política do deputado da Ala Liberal, fundador do Partido Social-Democrata e primeiro-ministro de Portugal’ –…

Com prefácio do Presidente da República – de que o SOL faz a pré-publicação em exclusivo –, este primeiro volume reúne intervenções de Sá Carneiro ao tempo em que foi deputado da Ala Liberal, na Assembleia Nacional, entre 1969 e 1973. «E retrata o líder da Ala Liberal e, a seguir, o líder nacional a fazer-se», escreve Marcelo Rebelo de Sousa, evocando «o primeiro combate» de Francisco Sá Carneiro «como líder»: «Contra o autoritarismo. /Pela liberdade e pela Democracia. /Certamente, uma luta contra o domínio do Estado. /Mas de um Estado antidemocrático, antiliberal, antiparlamentar e antipartidário». 

Além do prefácio de Marcelo Rebelo de Sousa, o livro conta ainda com um texto de introdução do atual líder do PSD, na qual Rui Rio confessa ter-se filiado no partido «por causa de Francisco Sá Carneiro». O líder social-democrata, relembrando o primeiro presidente do PPD/PSD, diz que ainda hoje se revê «em muitos dos princípios que [Sá Carneiro] defendeu» para afirmar que «a política sem servir e sem coragem não tem interesse nenhum».

PELA LIBERDADE E PELA DEMOCRACIA

1 – Foi fascinante assistir, de muito próximo, ao nascimento do líder político e estadista, imediatamente antes do 25 de Abril de 1974. Entre 1969 e 1974.

2 – Vê-lo integrar o grupo do Porto da Ala Liberal, em 1969.

Assistir, uma a uma, nas galerias de S. Bento, às suas intervenções sobre direitos, liberdades e garantias, cada vez mais duras contra o autoritarismo e pela Democracia.

Ouvi-lo falar das entrevistas que dera e nos livros que ia escrevendo – jurídico-políticos, primeiro, claramente políticos, depois. E da pugna pelo regresso do Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes.

Tê-lo, como convidado, em colóquios, à cautela realizados no salão paroquial da Igreja Alemã.

Acompanhar o seu percurso inicial, em 1970, sempre doutrina social da Igreja, sempre admirador da Social-Democracia sueca – como defendeu em entrevista a Jaime Gama –, sempre preferindo a mais rápida mudança política à expetativa da mais lenta transformação económica e social.

Isso, aliás, o distingue, em caminho mais do que em meta, da linha dos jovens governantes então chamados tecnocratas, em que cedo avulta João Salgueiro, e que conseguiria, a custo, institucionalizar a SEDES – mais vasta do que esse grupo e essa tentativa reformista – entre a Primavera e o Outono de 1970.

3 – Mas, nos primeiros meses de 1970, Francisco Sá Carneiro, é ainda relativamente discreto, na apelidada Ala Liberal, liderada na Assembleia Nacional por José Pedro Pinto Leite, e com vultos de peso, como, desde logo, João Pedro Miller Guerra e Francisco Pinto Balsemão.

Até que o europeísta incansável, dialogante em todos os azimutes, João Pedro Pinto Leite morre, num grupo de deputados, em acidente aéreo na Guiné.

4 – Aí começa a rapidíssima afirmação de Francisco Sá Carneiro como líder político, no imediato e para o futuro.

No imediato. Desde logo, no elogio parlamentar de José Pedro Pinto Leite, momento que é impossível esquecer, perante um hemiciclo entre o esmagadoramente desafeto e o inevitavelmente respeitador.

Nessa intervenção, Francisco Sá Carneiro assume a liderança da Ala Liberal, que projetaria, com outros companheiros de rota, nos projetos estruturantes sobre liberdade religiosa, liberdade de imprensa, revisão constitucional.

Tudo em 1971.

Mas, a liderança estaria também presente no último combate político significativo – as presidenciais de 1972.

Se a manutenção da censura-exame e dos quadros essenciais da PIDE-DGS já significa o fim de mínimas ilusões liberalizadoras, e a revisão constitucional o coroar de um dedicado labor reformista, a recondução do Presidente da República, Américo Thomaz – na impossibilidade de sequer pôr de pé a desejada candidatura do Governador da Guiné, António de Spínola –, assinala o termo perentório da esperança de 1969.

5 – A partir do Verão de 1972, Francisco Sá Carneiro decide por termo à sua atividade parlamentar e preparar a renúncia, que se concretizará em Janeiro de 1973. Entretanto, arranca o EXPRESSO que reforça o papel de Francisco Sá Carneiro como líder nacional, com a sua coluna “Visto”, na página de opinião.

O efeito é fulminante e arrasador. Ao fim de escassas semanas, a censura começa a mutilar os seus textos.

Sendo o encarregado de discutir com o chamado Exame Prévio, prosa a prosa, os cortes, deparo, crescentemente, com as diretivas para silenciar Francisco Sá Carneiro, e com a sua recusa a aceitar qualquer mutilação.

Resultado: passamos a publicar os seus discursos mais violentos do tempo da Assembleia Nacional.

Que, mesmo tendo sido inseridos no “Diário das Sessões”, jornal oficial, são cortados.

Tudo a visar o silenciamento forçado de um líder em afirmação.

6 – É neste contexto que Francisco Sá Carneiro acaba por se envolver mais na SEDES.

Aceita mesmo, após muitas insistências, em que António Guterres e eu nos envolvemos intensamente, integrar o Conselho Coordenador, que reune nomes dos mais relevantes no panorama político nacional, a começar por João Salgueiro.

Inicia, depois, um périplo pelos núcleos fortes da Associação, como Lisboa, Porto, Leiria, Torres Vedras e Covilhã, para Colóquios já politicamente incisivos acerca da participação política e eleitoral em Portugal. Francisco Sá Carneiro, Rui Vilar, José Carlos Megre e Tomás Oliveira Dias são os oradores da geração liderante na SEDES. Cabe-me ser o representante da geração mais jovem.

Pelo meio, Francisco Sá Carneiro tem um acidente de automóvel, que, além do mais, agrava problemas de saúde, e, na convalescença, passa pelo Encontro dito dos Liberais, que tem em Francisco Pinto Balsemão o grande promotor. Passa mas não quer falar.

Ainda assim, embora por apertada maioria, a moção a favor da legalização imediata dos partidos políticos triunfa.

7 – É a sua ideia obsessiva entre o final de 1973 e o começo de 1974: o regime encontra-se, irremediavelmente, bloqueado; não há tempo a perder; a mudança tem de ser imediata e politica, não amadurecida e económica e social; e exige a instante legalização dos partidos políticos, condição primeira no avanço para a Democracia.

Nos meses que antecedem Abril de 1974, em diálogo em que intervenho, com Rui Vilar, Francisco Sá Carneiro tem um objetivo premente: elaborar uma Lei dos Partidos Políticos.

Que está praticamente assente quando o 25 de Abril muda a História de Portugal.

8 – É destes cinco anos intensos que nos fala este primeiro volume dos principais textos políticos de Francisco Sá Carneiro.

E retrata o líder da Ala Liberal e, a seguir, o líder nacional a fazer-se.

Antes do mais, preocupado com a luta contra a ditadura, primeiro por dentro, depois por fora, e com a luta a favor das liberdades e da Democracia.

Assim se forja, enquanto líder, ainda antes da abertura de 1974.

Contra o autoritarismo. Pela liberdade e a Democracia.

Certamente, uma luta contra o domínio do Estado.

Mas de um Estado antidemocrático, antiliberal, antiparlamentar e antipartidário.

9 – É esse o seu primeiro combate como líder.

É ele que o torna nacionalmente conhecido e admirado.

É ele que congrega em torno de si toda uma área politica, que se constituirá em partido politico e que virá a liderar.

É ele que o consagra, mesmo para além dessa sua área, como um dos Pais Civis da Democracia em Portugal.

Marcelo Rebelo de Sousa

Dezembro de 2020