A corrupção em Portugal: legislar ou combater?

Serão milhares de milhões de euros a entrar nos próximos anos e aquilo que permitirá consultar, em tempo real, os projetos financiados consoante atividade económica, instrumento e programa, ainda teve votos contra?

Por vezes a politiquice ainda me consegue tirar do sério. Não deveria porque há muitos anos que vejo tanta decisão ‘estranha’ nesta democracia que vivemos que já devia saber o que ‘a casa gasta’. A que me refiro? Ao facto de ter sido aprovado por uma diferença mínima (110/108) a criação de um ‘Portal Online de transparência e monitorização do processo de execução dos fundos europeus’.

Aquilo que na minha inocência eu acreditaria que a proposta da Iniciativa Liberal mereceria unânime aprovação na Assembleia da República, conseguiu ter o PS a votar contra, com a abstenção do PCP (e obviamente do PEV). Serão milhares de milhões de euros a entrar nos próximos anos e aquilo que permitirá consultar, em tempo real, os projetos financiados consoante atividade económica, instrumento e programa, ainda teve votos contra?

Bem me podem vir com razões ponderosas que não consigo sequer entender a posição destes partidos que não aprovaram liminarmente esta proposta. Relembro que Portugal tem um índice de perceção da corrupção que o coloca internacionalmente em 30º lugar em 2019, com 62 pontos (64 pontos em 2019). Para mim, esta posição está longe de ser honrosa, sobretudo quando, num universo de 180 países, sendo Dinamarca e Nova Zelândia os líderes da transparência, com 87 pontos. Saliento que a média da União Europeia é de 64 pontos, estando Portugal no 13.º lugar.

Sabemos que o Governo aprovou em 3 de setembro uma ‘Estratégia Nacional de Combate à Corrupção 2020-2024 (ENCC)’ com discussão pública até 20 de outubro, embora excluindo o tema do ‘enriquecimento ilícito’ como oportunamente esclareceu a ministra Van Dunen, por ser tema ‘chumbado’ no Parlamento, o que honestamente não compreendo por questões de princípio. Louve-se o mérito do documento referir 7 (sete) prioridades, incidindo na melhoria (i) das práticas de transparência e integridade, quer no setor público quer privado, com objetivos de interação entre ambos, (ii) dos tempos de resposta dos tribunais e aplicação de penas, ou (iii) da ligação aos organismos internacionais.

Da discussão pública, saliento a posição da organização ‘Transparência e Integridade’ que considera esta ENCC ‘vaga e pouco ambiciosa’, referindo ainda que «falta a definição, de forma concreta, dos princípios e objetivos estratégicos ou fundacionais do futuro plano de ação e implementação, estando ausentes quaisquer diagnósticos, indicadores ou outras métricas sobre o que se pretende combater e superar». Ou seja, muito a fazer para operacionalizar a ideia.

Também a Ordem dos Advogados (OA) refere que a ENCC «tem laivos de prepotência processual» pela falta da estratégia de implementação de um verdadeiro plano de ação. A corroborar, descreve as já existentes e múltiplas iniciativas legislativas, das quais destaco o célebre ‘Pacote Cravinho’ em 2006 e a Lei 83/2017, sobre branqueamento de capitais. Pelo meio, produz múltiplas críticas e sugestões construtivas em diversos aspetos como (i) o ‘educar para a cidadania’, (ii) os ‘megaprocessos’, (iii) as documentações orais e registos áudio ou audiovisual, (iv) a necessidade de criação de programas de Compliance na Administração Pública e (v) a Lei do Cibercrime (buscas online).

Adicionalmente, a OA ainda salienta diversas incongruências, com uma surpresa que também é minha):

• Em 2020, existiram alterações à LOPTC (Lei da Organização e Processo do Tribunal de Contas) aumentando o limite prévio de vistos do Tribunal de Contas para os contratos públicos de 350 mil euros para 750 mil euros e isentando de fiscalização prévia pelo TC de contratos referentes a empreitadas e fiscalização de obras quanto a habitação acessível ou pública ou alojamento estudantil;

• o Regime Jurídico das Parcerias Público Privadas (D 111/2012) ter sido alterado pelo DL 170/2019 introduzindo Norma Interpretativa referindo que o regime não é aplicável a municípios ou regiões autónomas ou entidades que estes tenham criado e, por incrível que pareça, com efeitos retroativos, ou seja desde 2012!

• A criação de mais um organismo – Agência de Prevenção à Corrupção, em vez de se limitar a incrementar o papel do Conselho de Prevenção da Corrupção (criado pela Lei 54/2008 junto do TC) com recursos humanos e financeiros.

Em suma, ficamos com a ideia de que isto do combate à corrupção é basicamente uma ideia meritória e que basta produzir legislação para ficarmos de bem com as nossas consciências. Quando passamos ao concreto do seu combate, constatamos diversas práticas que nos deveriam envergonhar enquanto coletivo, cimentando mais dúvidas que certezas sobre a eficácia do combate, sobretudo em vésperas de recebermos largas dezenas de milhares de milhões de euros da União Europeia.

P.S. – Depois do fiasco da vacina da gripe que só em Portugal não tem consequências porque somos um país de ‘gajos porreiros’, esta semana teve sucessivas entrevistas da ministra Temido a garantir que o Governo tem planos para a distribuição da vacina da covid. Depois dos insucessos na proteção dos lares, na mistificação da origem das contaminações com as famílias responsáveis por 68% dos contágios que determinam medidas de confinamento ruinosas para a economia mas em que posteriormente se descobre que em 81% não se conhece a origem, acham mesmo que existem credenciais governativas sobre planeamento que nos tranquilizem?