Valéry Giscard d’Estaing. O homem que pôs França no coração da Europa

O antigo Presidente francês, um aristocrata que sonhou ser um homem comum, é lembrado como um dos arquitetos da integração europeia.

O mundo disse au revoir a Valéry Giscard d’Estaing, recordado como o primeiro Presidente moderno de França, arquiteto do todo-poderoso eixo franco-alemão, um centrista reformista e ardente europeísta, levado pela covid-19 aos 94 anos. Conhecido como VGE, deixou como legado o Sistema Monetário Europeu, embrião do que seria o euro, criado ao lado do seu bom amigo Helmut Schmidt, então chanceler alemão, bem como uma extensa rede de TGV e de energia nuclear, além de ter de ter despenalizado o aborto e baixado a idade de voto.

Ainda assim, Giscard teve uma vida cheia de feitos mas também de escândalos, e dificilmente pode ser descrito como uma figura adorada pelos franceses, que lhe deram apenas um mandato no Eliseu – foi derrotado em 1981 por François Mitterrand, que liderava uma coligação entre socialistas e comunistas. Muitos não esquecem o custo das reformas neoliberais de Giscard, outros lembram que foi acusado de aceitar diamantes de um ditador africano ou de repetidamente apalpar o rabo de uma jornalista alemã do canal WDR, em 2018.

“França perdeu um estadista, a Alemanha um amigo e todos nós perdemos um grande europeu”, lamentou a chanceler alemã, Angela Merkel. “O rumo em que ele colocou França ainda nos guia”, garantiu o Presidente francês, Emmanuel Macron, muitas vezes comparado a Giscard, a quem apelidou como “um servo do Estado, um político do progresso e da liberdade”, assegurando que “a sua morte deixou França de luto”.

 

Berço d’ouro

Eleito em 1974, aos 48 anos, como o mais jovem chefe de Estado francês desde Napoleão, Valéry Giscard d’Estaing sabia estar destinado a grandes coisas. Do lado do pai, dirigente das finanças na Renânia, uma região alemã então ocupada por França, Giscard traçava a sua linhagem até uma velha família da nobreza de antes da Revolução francesa; do lado da mãe, oriunda de uma família influente em círculos conservadores, sabia ser descendente de Luís xv, cujo filho foi decapitado na revolução.

Giscard foi obrigado a abraçar grandes tarefas históricas bem cedo. Aos 18 anos, na ii Guerra Mundial, juntou-se à resistência à ocupação nazi de França, distribuindo jornais clandestinos. Estava em Paris em 1944, quando o general Charles de Gaulle – de cujo Governo faria parte uma década depois – entrou na cidade.

“Ele começou o seu discurso dizendo: ‘Saúdo Paris, que se libertou a si mesma sozinha’. Os meus braços caíram”, recordou Giscard, que já na altura sonhava com maior proximidade entre França e outros países europeus como prioridade, numa entrevista recente à RTL. “Como é que alguém podia dizer uma coisa assim?”

 

Papel ingrato

Depois de ser eleito deputado por Auvergne, um lugar que fora ocupado pelo seu avô e bisavô maternos, Giscard foi subindo no partido de De Gaulle, ganhando fama de burocrata competente e bom orador. Contudo, como ministro das Finanças, os duros cortes fiscais que impôs tornaram-se profundamente impopulares, levando à sua demissão em 1966.

Foi então que criou a sua própria fação política, o Partido Republicano Independente, que viria a aliar-se com o Presidente Georges Pompidou, a quem sucederia após a morte deste.

No Eliseu, Giscard tentou cultivar a imagem de um líder popular, uma pessoa comum que lutava por pessoas comuns, mas nunca conseguiu livrar-se da fama de aristocrata distante. Por mais que se deixasse fotografar sem os uniformes militares a que os franceses se tinham habituado, tocasse acordeão ou fosse jantar a casa de cidadãos, levando as câmaras atrás, a imagem nunca pegou.

E mesmo que essa imagem tivesse pegado, Giscard nunca teria tido uma vida fácil. Teve o papel ingrato de lidar com uma brutal crise económica, fruto da crise do petróleo de 1973 – daí a sua opção pela energia nuclear. Na prática, foi o timoneiro do barco quando este se afundava, no fim dos Trente Glorieuses, os 30 anos de enorme crescimento económico após a ii Guerra Mundial, de que os franceses ainda hoje falam com muita saudade.