O sapatinho de Marcelo

Marcelo desde cedo fez tudo para vincar a diferença com o seu antecessor, Cavaco Silva – espartano, frio e distante –, cujo segundo mandato coincidiu com os duros anos de austeridade imposta pela troika.

Marcelo Rebelo de Sousa vai finalmente assumir a recandidatura à Presidência da República. Um pro forma. Ao longo deste primeiro mandato, Marcelo por diversas vezes foi reafirmando a vontade de continuar em Belém, apesar de ir inventando sucessivas justificações para  adiar o mais possível o inevitável anúncio e esforçar-se, sempre, por manter uma réstia de dúvida sobre a sua decisão. Que já era há muito evidente.

Como era tanto mais impossível renunciar à recandidatura quanto o tempo se foi esgotando para permitir uma hipotética alternativa. A partir do fim do verão, já não podia dizer que não.

E menos ainda com a segunda vaga da pandemia a revelar-se mais impiedosa do que a primeira.

Até agora, todos os Presidentes da República eleitos depois do 25 de Abril recandidataram-se ao cargo cinco anos volvidos e foram reeleitos à primeira volta: Ramalho Eanes em 1981 (com 56,44%), Mário Soares em 1991 (70,35%), Jorge Sampaio em 2001 (55,76%) e Cavaco Silva em 2011 (52,95%).

De todos, e de longe, Marcelo foi o Presidente que mais quebrou o distanciamento com o povo, quem mais se misturou com o povo, quem mais fez questão de furar todas as regras protocolares e de segurança, por uma selfie, por um abraço, por mais um beijo.

Marcelo desde cedo fez tudo para vincar a diferença com o seu antecessor, Cavaco Silva – espartano, frio e distante –, cujo segundo mandato coincidiu com os duros anos de austeridade imposta pela troika.

Daí ter sentido a necessidade de se afirmar pelos afetos para com um povo sacrificado e triste.

E foi pelos afetos que se foi impondo como o mais popular dos políticos e como o mais popular dos Presidentes.

Também por isso cedo se foi colocando a dúvida, não sobre a sua reeleição, mas apenas e só pela dimensão da sua óbvia recondução, tendo como referência o recorde percentual de votação em Mário Soares nas eleições de  1991.

Antes de lançados todos os dados, a questão que se punha nas próximas Presidenciais era se Marcelo ultrapassaria ou não essa fasquia de Soares.

Ora, se as sondagens o colocavam à partida ali resvés Campo de Ourique, a pandemia parece já ter-lhe tirado todas as ilusões: o recorde vai continuar a ser de Soares pelo menos por mais cinco a dez anos.

E, agora, a questão passou a ser outra: qual o impacto da covid-19 na dimensão da vitória de Marcelo?

E porquê?

Porque, se parece definitivamente afastada a hipótese de poder bater ou sequer chegar perto do recorde de Mário Soares, não se sabe até que ponto poderá ser penalizado e não ver traduzida em votos a sua tamanha popularidade.

 

Com Ana Gomes, André Ventura, Marisa Matias, João Ferreira e Tiago Mayan Gonçalves na corrida, Marcelo Rebelo de Sousa não tem de todo a reeleição em risco.

Nenhum dos seus concorrentes tem perfil para o cargo nem sérias pretensões de o obrigar a uma segunda volta.

Porém, todos juntos e somados com votos brancos e nulos podem bem ultrapassar os 40% que façam Marcelo ser reeleito com uma percentagem inferior a 60 pontos, colocando-o quase a par das margens de reeleição de Ramalho Eanes e de Jorge Sampaio e pouco acima daquele que terá sido o mais impopular de todos os Presidentes, Cavaco Silva – aquele mesmo que, não obstante, foi o único a vencer quatro atos eleitorais (duas legislativas e duas presidenciais) com mais de 50% dos votos expressos.

O pior, para Marcelo, é que tudo pode depender de como estiver a epidemia no dia 24 de janeiro de 2021.

Por isso, sempre defendeu o estado de emergência e que o Governo não devia aliviar as restrições no Natal e no Ano Novo. Porque o relaxamento nas medidas preventivas podem antecipar uma terceira vaga da pandemia para meados de janeiro. Ou seja, mesmo a tempo de ter impacto nas eleições presidenciais.

Em democracia, por um voto se ganha e por um voto se perde.

Mas, no caso de Marcelo,  não será nunca bem assim.

Marcelo não distribui afetos pelo povo sem pensar em si próprio.

Ele é quem mais precisa de se sentir querido e amado.

Ficar mais perto das votações de Ramalho Eanes, Jorge Sampaio e Cavaco Silva do que da de Mário Soares seria como se o povo lhe cravasse uma faca nas costas ou o obrigasse a carregar uma ainda mais pesada cruz no calvário que para ele será o seu segundo mandato.

Resta saber o que lhe calha no sapatinho.