“O mais impressionante é que Trump veio logo após Obama”

Para o lusodescendente David Simas – filho de Deolinda, natural da pequena aldeia da Abela, no Alentejo, e de António, do Faial da Terra, nos Açores – de 50 anos, dirigente da Fundação Obama há quatro, «uma maneira de ver a política americana é: o eleitorado quer o oposto do que acabou de ter».

«Repetia a mesma coisa, todos os dias, à entrada e à saída da Casa Branca. O lema era: lembra-te de quem és e daquilo que representas», disse. Como se sentia por ser o braço-direito do Presidente?

Não diria que sou o braço-direito do Presidente nem de ninguém. Muitas pessoas integravam aquilo a que chamamos gabinete executivo e cada uma delas tinha um papel e uma responsabilidade únicos. Ninguém era mais importante ou valioso. Se encararmos a Presidência como um serviço público – a presidência norte-americana é o único cargo no país que é eleito por todos –, existe tanto uma responsabilidade legal como uma funcional mas, acima de tudo, uma simbólica. E esta, a meu ver, é a mais importante. Quando repeti esse lema, estava ciente de que, ao contrário dos meus colegas, não tinha frequentado a melhor escola – era boa, mas não estava entre as dez ou 20 melhores universidades –, os meus pais eram imigrantes, e a incrível sorte, honra e responsabilidade de ser conselheiro e, depois, diretor político do Presidente acompanhava-me diariamente.

Chegou à Casa Branca em janeiro de 2009. Primeiro, atuou como conselheiro do Presidente Barack Obama. Em 2012 assumiu um papel central na sua reeleição e tornou-se diretor do gabinete político. Que lição não esquecerá?

Algo extremamente importante foi ouvir as pessoas, de todo o país, estar atento aos sentimentos que têm – não julgá-los porque, assim que começo a fazê-lo, não transmito a mensagem necessária ao Presidente. Isto porque a Presidência é um trabalho muito isolado e, se não se tiver cuidado, rapidamente se perde a perspetiva e a compreensão daquilo que as pessoas pensam e sentem. Uma das coisas que eu precisava de fazer era deixar de lado qualquer julgamento ou preconceito que pudesse ter de um indivíduo ou daquilo que ele estava a dizer e fazer, e apenas tentar ajudá-lo. Não apenas como um estenógrafo, apenas em primeiras instâncias, mas sim como alguém que entendia que existiam perspetivas diferentes. E isso exigiu, por vezes, que fizesse uma ligação entre diversas comunidades, como a de imigrantes em que cresci ou a da minha faculdade.

Como podemos sentir que pertencemos a uma comunidade?

Somos seres muito sociais. Queremos interagir com as pessoas, preocupamo-nos com a opinião que tecem a nosso respeito. A sociabilidade baseia-se em instintos e necessidades; contudo, ao mesmo tempo temos a tendência de ser muito desconfiados e chegamos a temer pessoas que não se parecem connosco, não vêm de onde viemos, que têm uma aparência diferente. É como um paradoxo, porque precisamos de conexão, mas temos um discernimento elevado sobre com quem comunicamos.

Então será que é positivo fazer parte desse grupo maior do que nós se existe o preconceito?

A questão é que há um conceito relacionado com a forma como falamos da nossa comunidade. Em português, dizemos «a nossa gente». E por definição existe «a nossa gente» e «aquela gente». Se atribuímos uma superioridade e um conjunto de qualidades à nossa comunidade, essa sensação de exclusividade pode ser perigosa.

Porque rejeitamos os outros.

Se entendermos que fazemos parte de uma comunidade específica, mas não a única, reduzimos o risco de tribalismo. Porque existe outro fator em jogo: a identidade. Há pessoas que se tornam a sua própria comunidade, digamos assim, como se todos os valores e relacionamentos nascessem em função da mesma. As barreiras começam a surgir e a simples conceção da existência de outra comunidade assemelha-se a um ataque pessoal. Trabalhamos profundamente este tema na Fundação Obama, tentamos entender como as pessoas navegam entre comunidades. Até porque a forma como se apresentam pode diferir. Tenho orgulho em ser norte-americano, mas isso não significa que quem não é norte-americano seja mau.

O que nos conduz à discriminação?

Acredito que se trata de um comportamento aprendido com base em sinais subtis, a forma como vemos os nossos pais reagirem, assim como o entendimento da linguagem utilizada. Há uns dias estava a falar com o psicólogo Richard Davidson e ele disse-me que, até aos três anos de idade, uma criança não distingue com quem brinca com base na raça.

Costuma dizer que os seus pais, António e Deolinda Simas, lhe ensinaram aquilo em que se baseia a cidadania, mas também a perceber que deve ajudar a comunidade em que está inserido e a não esquecer que a sua responsabilidade como norte-americano passa por muito mais do que os direitos que tem: prende-se com a necessidade de retribuir. Pensa nisto diariamente?

Respeito é a palavra mais importante para os meus pais. E não estamos apenas a falar do respeito que temos pelos outros, mas sim a ideia de que nos devemos apresentar a terceiros com respeito porque o nosso comportamento reflete-se neles.

Anteriormente mencionou que todas as manhãs e noites reflete acerca do seu dia. A sua esposa refere-se a esse hábito como “uma prática de autoflagelação”. Em que se baseia?

Se não tentarmos perceber aquilo em que errámos e não traçarmos um plano para melhorar, será que aprendemos algo? Começamos a acreditar em tudo, até nos nossos disparates, e consciencializamo-nos de que estamos sempre certos – quando, na realidade, estamos errados na maior parte do tempo. Uma das coisas em que o Presidente Obama era e continua a ser extremamente talentoso é no reconhecimento da fragilidade da perceção, a ideia de que, quando interagimos com outro ser humano, temos uma noção de quem é, daquilo em que acredita e dos seus motivos, mas podemos não ser certeiros naquilo que diz respeito a essas perceções.

Principalmente quando conhecemos alguém pela primeira vez.

Sim, queremos causar uma boa primeira impressão, apresentar a nossa melhor versão. Mas é imperativo que estejamos sintonizados com os sinais que a outra pessoa nos envia. Se está feliz, triste, de que país é, onde estudou… É como se tivéssemos uma tela em branco e, aos poucos, uma imagem nos seja apresentada e criássemos uma história ou uma perceção.

Podemos fazer uma analogia com o mandato de Donald Trump.

Pois, é que nesse caso já não se tratava de uma questão de primeiras impressões, mas sim de anos de interação. Especialmente com pessoas do Partido Democrata, mas foi criada uma história tal que já não havia abertura para aceitar qualquer variação na narrativa. No lado oposto, o Presidente Obama desafia-nos a colocar essas perceções de lado, mesmo quando as mesmas são fruto de anos de observação do comportamento alheio. É uma das lições maravilhosas sobre a maneira como ele encara a liderança. Não diz coisas como «tens de fazer isto ou aquilo», mas, ao observá-lo, podemos entender que decisões toma. E esse modelo de atuação estabelece uma cultura e normas, entendemos como devemos comportar-nos como equipa. Era esta a cultura da Casa Branca, pelo menos enquanto estivemos lá.

Abordou anteriormente «o ato de levar a que as pessoas vejam o seu potencial». Isto é, não lhes é dado o peixe mas são ensinadas a pescar?

Podemos usar a metáfora da pesca, sim. Posso ensinar alguém mas, se costuma pescar num rio calmo e, um dia, diz-me que quer pescar no meio do mar, como devo agir? Um bom líder diria «Ok, quais são as opções? Que motivos te levam a querer ir até ao mar?». Porque não se dá a resposta, apenas se trabalha com a pessoa acerca do modo como os desafios são formulados.

É essa a abordagem seguida pelo Presidente Obama?

O Presidente dava uma orientação clara, à equipa, acerca do resultado final pretendido. «Eu quero que faças x para atingirmos y. Como é que chegarás lá, a direção, o caminho, os recursos, a equipa, tudo depende inteiramente de ti. Estou aqui se encontrares alguns obstáculos – vou ajudar-te a removê-los – e vou responder a algumas perguntas que possas ter, mas este trabalho é teu e não meu». Esta é uma forma realmente poderosa de liderança que motiva todas as pessoas. E, assim, na Fundação Obama acreditamos plenamente que cada pessoa tem uma voz, uma vocação e capacidades. Como é que as manifesta para atingir um fim? Isso é com ela. O que podemos fazer é estar lá para apoiar, abrir portas, fornecer algumas informações e recursos, como parte de um ecossistema.

E nesse ecossistema da liderança política diria que ouvir é mais importante do que falar?

Sim, na generalidade. Existem alguns casos raros em que, quando todas as informações foram reunidas, quando vislumbramos escolhas aparentemente perfeitas, em algum momento, alguém precisa de decidir. Mas existem diferentes opções. Há uma liderança consensual e outra mais autoritária. No entanto, quando acaba o momento de ouvir, e com base em toda a recolha de feedback – que é a parte mais importante, independentemente do resultado bom ou mau –, posso afirmar que, na Casa Branca, dizemos que a maior parte das decisões não são 99% garantidas. Talvez 52%.

E a orientação sobrepõe-se à imposição de normas muito rígidas?

Aquilo que podemos fazer é reunir o máximo de informação, estudar os riscos e as recompensas e, com base nisso, quando temos o conforto de saber que explorámos algo na totalidade, tomamos a decisão. Temos de ficar confortáveis mas, ao mesmo tempo, abertos aos dados que surgem e nos indicam que talvez as suposições subjacentes estavam erradas e, portanto, apresentamos humildade para nos ajustarmos à realidade. É aqui que ouvir é importante novamente. Não se trata de dizer «ok, tomei uma decisão e permaneço com ela, não me importo com os factos». Temos de ouvir verdadeiramente e sem julgamentos. Porque o orgulho, o ego e a vaidade estão envolvidos.

A sua perspetiva sobre a liderança parece conectar-se com a forma como vemos os outros: temos de os ver como nos vemos. Esta seria a base da compaixão e da cooperação que constitui o único funcionamento viável da democracia, como tem defendido?

A democracia é, na sua essência, a noção de que nos autogovernamos. Numa comunidade, como parte dessa governança, damos o nosso consentimento a um grupo de pessoas para que tomem decisões em nosso nome. Em qualquer comunidade, seja grande ou pequena, quando surge um problema, se houver 1000 pessoas no grupo, existirão 1000 ideias diferentes. Algumas são boas, algumas são más. Então como medíamos essas centenas de ideias para que resultassem num conjunto de ações? Se as pessoas pensarem que estão certas e o resto está errado, a noção de democracia irá falhar.

A democracia funciona na ausência do coletivo?

Pode funcionar, mas torna-se binária, tribal, e as minorias são pisadas pela maioria – pela raça, pelo género, pensamento, poder. E isso pode ser democracia, mas não no seu cerne de autogovernança. A aspiração da vida em democracia passa pela compreensão de nós e do outro assente na compaixão. A comunidade está acima das minhas necessidades ou desejos, somos um todo.

Essa linha de pensamento pode prender-se com a atuação de Barack e Michelle Obama após o tiroteio na Escola Primária de Sandy Hook, no Connecticut, em dezembro de 2012? Disse anteriormente que o Presidente e a primeira-dama fizeram o luto com as famílias e abraçaram-nas, sendo esse comportamento uma das razões pelas quais mantém a sua esperança na liderança, como disse.

Naquelas horas, desempenharam papéis diferentes. Ao falarem com uma criança que tinha acabado de perder o irmão, por exemplo, agiam como seres humanos, emanando empatia e compaixão centrais. Por outro lado, o simbolismo da Presidência foi realçado. O resto do país viu que o líder, num momento de tristeza e tragédia, pode agir de maneira empática e compassiva, enviando um sinal para todos sobre como devemos ser e como devemos comportar-nos.

Não importa se somos democratas ou republicanos, sentimos o mesmo.

Isso é que é difícil: mesmo se discordarmos profundamente com alguém, sentindo emoções negativas quando o vemos, não podemos esquecer-nos de que é filho de alguém, tem medo, ama, sente raiva, fica alegre, quer ser aceite. Portanto, não há diferenças. Aquilo que é diferente é a maneira como nos manifestamos. Todas as pessoas têm dignidade e têm de ser tratadas, como diriam a Deolinda e o António Simas, com respeito. E esse é o respeito subjacente que transcende tudo. Não se trata de raça, género, sexo, identidade ou classe social, mas sim de humanidade.

Há coisas que não têm nada que ver com orientação política. Por exemplo, o Presidente Obama lia dez cartas de cidadãos todos os dias.

Se vemos alguém, especialmente uma criança, a chorar, queremos saber o que se passa imediatamente e fazer algo para aliviar essa dor. Por um lado, temos a capacidade de discriminar, julgar e categorizar. Mas também temos a capacidade de sentir aquilo que os outros sentem. Então, quando o Presidente recebia essas cartas e lia a angústia de uma pessoa e a sua história, aquilo que era desencadeado passava pela urgência de fazer algo para ajudar. Trabalhei com o governador do Massachusetts, Deval Patrick, que é um ser humano maravilhoso, e uma das lições que me ensinou e continua comigo é que podemos liderar voltando-nos para os outros ou estando contra eles. Isto significa que podemos aproximar ou separar os cidadãos.

De que forma?

Cada um de nós tem essa capacidade, essa característica saudável de se concentrar no que é comum na nossa humanidade compartilhada. Mas também tem os traços doentios de raiva, ganância e divisão. Por isso é que, para um líder, especialmente por saber o impacto que as suas ações têm, a liderança baseada em valores e no esforço de ancoragem nas características saudáveis é fundamental. Tenho esperança – e talvez seja ingénuo – de que, mesmo tendo esses dois lados, queremos que o saudável se sobreponha. Existem estudos realmente interessantes – a título de exemplo, um em que são apresentados fantoches a crianças. Os fantoches roxos são bondosos, brincam e abraçam-se, enquanto os vermelhos lutam, demonstram raiva, roubam itens um ao outro. Os investigadores colocaram os fantoches em frente de crianças e, 95% das vezes, elas escolheram o fantoche roxo. Começamos a ficar condicionados, à medida que envelhecemos, de uma forma em que a divisão e a raiva se tornam muito poderosas.

Podemos dizer que o Presidente Obama uniu os norte-americanos, enquanto o Presidente Trump criou um fosso entre eles?

Acho que o Presidente Obama é um exemplo de união e o Presidente Trump… provavelmente, ele discordaria, e eu detesto julgar alguém que não conheço, mas percebi que constrói poder assente na desunião. Vou recorrer ao slogan «Make America Great Again»: é claro que, em primeiro lugar, de um lado está o Presidente dos EUA, e a sua responsabilidade principal é proteger, preservar e defender a Constituição do país. Esse é o seu trabalho. Só que isso torna-se perigoso quando são atribuídas características negativas a todos os outros países, sendo ignorados responsabilidades e relacionamentos porque se diz que a América faz aquilo que quer.

E não faz?

Esses dias acabaram, se é que algum dia existiram. Internamente, para a política americana, pode ser muito bom porque os americanos que sofrem dizem: «Por que raio gastamos um dólar ou mandamos um homem ou uma mulher para combate para proteger os outros? Esse não é o nosso trabalho, é o trabalho deles». É o oposto da união, mas existe devido à nossa natureza dupla. Mas o facto de nos aproximarmos ou afastarmos não se deve exclusivamente ao Presidente, mas sim a cada um dos cidadãos. Só que, dependendo da história que ouvimos, esses instintos podem ser acionados de uma forma ou de outra.

Como é que isso aconteceu nas duas últimas Presidências?

A visão de mundo do Presidente Obama é que as coisas que temos em comum são muito maiores do que aquelas que nos separam. A visão do Presidente Trump é que as coisas que nos dividem são maiores do que aquelas que nos unem. Este não é um fenómeno novo e não é exclusivo dos EUA. Se olharmos para o nosso planeta, toda a nossa política baseia-se em «apontar o dedo». A um refugiado, ao dono de uma empresa, a um grupo de pessoas… existe uma história negativa que permite a quem está sentado em casa dizer «se não fossem eles, a minha vida seria melhor». Se lermos as obras de Cícero, torna-se claro que a história se repete: romano contra estrangeiro, aristocrático contra plebeu, coligações baseadas no medo, na raiva e na xenofobia. Mas o Presidente Obama fala acerca disso constantemente: mesmo com todos os desafios que enfrentamos, o mundo nunca foi mais justo, pacífico ou inclusivo.

Quais são as outras grandes diferenças que assinalaria entre os Presidentes Obama e Trump?

A visão da natureza humana difere completamente. O Presidente Obama acredita que as pessoas podem aprender, mudar e melhorar com o tempo – uma espécie de longo arco em direção à justiça. A visão de Trump é mais limitada, tem uma mentalidade de escassez, como se tivesse um bolo e ele nunca pudesse crescer indo ao forno. Eu não quero ser injusto com ele, mas o Presidente Obama tem uma visão muito mais interdependente: sim, somos todos seres humanos independentes, mas estamos interligados. O Presidente Trump alinha-se mais com a independência através de citações como «só eu posso resolver x e y».

E em relação à visão que os dirigentes têm acerca deles mesmos?

O Presidente Obama acreditava que, da maneira como dirigia a Casa Branca, as normas eram importantes, mas que não estava acima da lei. Que era um jogador em toda uma infraestrutura democrática. O Presidente Trump tem muito mais a visão do papel do Presidente como monarca e autocrata, como se o mundo girasse em torno dele. O Presidente Obama raramente se gabava: ele nunca diria algo como «eu sou isto ou aquilo». Temos de acreditar que, para atingir um objetivo, precisamos dos outros – aqui existe a humildade aliada à confiança, versus a visão do Presidente Trump, que é muito egocêntrica. São absolutamente distintos enquanto pessoas pela maneira como veem a Presidência, a democracia e como percecionam onde o Estado de direito se encaixa. O que é impressionante é que um veio logo após o outro. O Presidente Obama escreveu no seu livro A Promised Land que o Presidente Trump pode ser visto como uma reação de um grande segmento do país.

Como assim?

Tínhamos Barack Obama, esse símbolo afro-americano com uma família negra na Casa Branca, não podendo ser mais diferente de Donald Trump. Uma maneira de ver a política americana é: o eleitorado quer o oposto do que acabou de ter.

Essa conceção aplica-se a Joe Biden?

Podemos construir uma narrativa sobre Joe Biden sendo calmo, experiente, gentil, exatamente o oposto de Trump. E eu ouvi isto de muitos eleitores nos últimos meses, que me confessaram: «Eu quero um Presidente chato, estou cansado de me preocupar todos os dias com o que o Presidente acabou de tweetar. Eu quero voltar ao normal». E Biden é a aproximação máxima à normalidade que podemos ter. Quando assumir o cargo terá 78 anos, será o Presidente mais velho que já elegemos. É interessante pensar sobre a Presidência a partir dessa perspetiva diferente.

Existem acontecimentos que favorecem a eleição de determinado candidato presidencial?

Uma forma de pensar a liderança, em qualquer país, é que existem momentos e cada momento tem as suas características. Uma pessoa como Biden concorreu à Presidência em 1998 e teve de desistir. Não era a sua hora. Em 2008 teve um desempenho terrível no caucus do Iowa, não era a sua hora. Agora é a mesma pessoa, a questão é que é perfeita para este tempo. O Presidente Obama, provavelmente, diria que 2008 foi único. Quando pensamos no que aconteceu, na Presidência de George W. Bush: duas guerras, o país estava muito dividido, a economia entrou em colapso em setembro de 2008, dois meses antes da eleição, com a falência do Lehman Brothers. Obama e John McCain estavam empatados. Naquele momento, basicamente, Obama começou a construir uma liderança significativa. Nunca podemos saber verdadeiramente o que acontece mas, sem estes acontecimentos, o povo americano elegeria um senador afro-americano do Illinois para Presidente dos EUA? Não sei.

Existe forma de saber quando o momento é certo?

O senador Ted Kennedy, após a eleição de Obama para o Senado em 2004, disse-lhe: nunca sabes quando chegará a tua hora mas, quando ela chegar, terás de estar preparado para agir. Quando pensamos na vida dele, ciclo após ciclo, era sempre «ainda não, ainda não». Pois esperou e, quando finalmente concorreu contra o Presidente Jimmy Carter, nos anos 80, a porta foi fechada. Portanto, não podemos esperar porque, quando a porta se abre, pode ser fechada a qualquer momento. Se esperarmos pelas condições perfeitas, elas nunca chegarão. O Presidente Obama entendeu isso e, em 2006 e 2007, tomou a decisão. Foi um fenómeno: havia 5 mil, 10 mil pessoas em todos os lugares onde ele ia, estava nas capas de todos os jornais. Devia esperar? Há o argumento de que devia ter sido senador por mais anos e esperar por 2012 ou 2016, mas as condições nunca seriam tão ótimas, em certas vertentes, como foram em 2008.

«A nossa missão é inspirar, empoderar e conectar as pessoas para que mudem o seu mundo». Esta é a forma como o Presidente Obama descreve a sua fundação.

Imaginem se conseguíssemos encontrar um milhão de Baracks e um milhão de Michelles e conectá-los através da maior rede de líderes que o mundo já viu. Quão bom isso seria? É aquilo que tentamos fazer. Há milhares de jovens líderes que trabalham sozinhos, mas queremos uni-los. Por exemplo, a jovem portuguesa que se preocupa com a educação trabalhará com o rapaz dos EUA que quer solucionar a pobreza. Como organização, encontramos estes jovens e estamos a trabalhar no desenvolvimento de um currículo. Assim, mentores – como empreendedores e dirigentes governamentais – poderão auxiliar estas pessoas, que se tornarão CEO, primeiros-ministros, governantes, líderes de organizações não governamentais. Reconhecer que estamos a trabalhar com esse objetivo em mente é empolgante e, simultaneamente, recompensador.

É habitual ouvi-lo dizer que começou a trabalhar com o Presidente Obama por ter tido «literalmente uma comunidade inteira» a erguê-lo nos momentos em que precisou de apoio. «Eu estava aos ombros de pessoas que tornaram isto possível», referiu. Tenta ser também um apoio para quem o procura por meio da Fundação Obama?

Se acreditarmos que existem milhões de jovens líderes com tremendas possibilidades de sucesso, temos de maximizar o seu potencial com a expetativa de que, à medida que sobem, eles também levantarão a próxima geração. O oposto não pode acontecer e Michelle Obama fala imenso sobre este assunto: se me dão um escadote para subir e, quando chego ao topo, não o entregar a ninguém, que tipo de pessoa sou? Tenho de o segurar firmemente para que a próxima pessoa suba com confiança. De outro modo, terei a mentalidade de que sou autossuficiente e até acredito que construí o escadote e que sou o melhor a subi-lo. Isso seria bom para mim a curto prazo, mas não consigo fazer tudo sozinho.

Com as novas tecnologias, estamos mais conectados do que nunca, mas parece haver falta de empatia, compreensão e auxílio mútuo. Qual é o impacto do afastamento dos valores tradicionais na política?

Cada população tem uma certa percentagem de pessoas que estão abertas a argumentos como os de Donald Trump. O mundo torna-se muito mais pequeno com as tecnologias. Vou parecer um velho ao dizer isto, mas são milagres. A minha geração e outras que a antecedem sentem que a sua cultura está a acabar, como se nada fizesse sentido e quisessem recuar no tempo. Por isso é que existe uma força tremenda na frase «Make America Great Again»: existe um certo conforto em pensar que vamos regressar a uma era, mas a verdade é que ela nunca existiu. O desafio para as gerações mais novas é navegar por essas tensões que estão tão embutidas na condição humana. O meu grande amigo Jon Kabat-Zin, mestre do mindfulness, costuma dizer que vivemos num mundo digital mas ainda temos mentes analógicas. Enquanto as nossas mentes se atualizam, os demagogos têm oportunidade de se fazerem notar e desencadear o medo, que é quase atraente nos momentos de mudança a grande escala como a pandemia que vivemos.

Como tem encarado a covid-19?

É um paradoxo. Por um lado, é um dos melhores tempos da minha vida porque não tenho de viajar constantemente, consigo passar tempo de qualidade com a minha família e relaxar um pouco. Tem que ver com a chamada lei do sofrimento, definida por Mahatma Gandhi como a noção de que a lei não se aplica a qualquer sofrimento, mas àquele que é suportado por alguém voluntariamente e sem ódio nutrido por um oponente. Aliás, Martin Luther King afirmava que o «sofrimento imerecido é redentor». Ou seja, para certas pessoas, e sou uma delas, este isolamento tem corrido bem. Algo importante a reter é: mesmo nos momentos em que estamos separados de tudo aquilo que acontece em nosso redor não podemos ficar desligados apenas porque a nossa vida é muito diferente daquela que outras pessoas têm. De certa forma, é bom manter essa separação porque, por vezes, ficamos tão focados no sofrimento alheio que o mesmo se torna opressivo. Não só é difícil resolver todos os problemas do mundo, mas impossível.