Coligações negativas, negócios de milhões, mas ‘crise’ ultrapassada

Pouco importa que o custo da aprovação deste primeiro orçamento para 2021, viabilizada pela ‘generosidade’ dos 10 deputados do PCP e de mais uma meia dúzia de voluntários, tenha custado uma ‘pipa de massa’ (fala-se em mais de 1000 milhões de euros) e, sobretudo, tenha contribuído para que a política orçamental, que já era uma…

Pronto está feito. Já temos orçamento para 2021 e a crise tão temida, tão usada e tão vilipendiada pelo sr. primeiro-ministro, desapareceu por encanto.
Pouco importa que o custo da aprovação deste primeiro orçamento para 2021, viabilizada pela ‘generosidade’ dos 10 deputados do PCP e de mais uma meia dúzia de voluntários, tenha custado uma ‘pipa de massa’ (fala-se em mais de 1000 milhões de euros) e, sobretudo, tenha contribuído para que a política orçamental, que já era uma realidade estranha, sem uma linha de rumo coerente, se tenha transformado, ainda mais, numa verdadeira manta de retalhos.
Para que a festa fosse ainda mais brilhante – afinal estava em causa salvar o país de uma grave crise política – nem sequer faltou a girândola pirotécnica final, sobre a transferência de uma verba para o Fundo de Resolução cujo destino há de ser o buraco (sem fundo?) do Novo Banco.
A esta verdadeira euforia nem sequer faltou a surpreendente cooperação do líder da oposição, e, claro, dos seus deputados, que, entusiasmados com o encanto revolucionário dos bloquistas, acabaram por branquear uma cena semelhante, protagonizada pelo primeiro ministro, uns meses antes, num confronto com Centeno, do qual saiu derrotado.
Tudo lógico e racional, como se vê, e, sobretudo, tudo oportuno numa altura em que o país atravessa uma crise económica e social terrível e quando as perspetivas de futuro não são brilhantes, como acaba de ser referido no habitual relatório de Outono da OCDE.

Mas do mal o menos, evitámos a crise política que o PM temia (?) e com mais ou menos habilidade (entenda-se disponibilidade para entregar ao PCP mais uns milhares de milhões de euros) é possível construir uma ‘geringonça’ coxa e, desde que o futuro PR colabore, a estabilidade pode ser estendida até 2023, data mítica que António Costa precisa para aspirar, apesar de não ser fácil, ocupar um lugar de direção na política europeia.
Depois, como se diz vulgarmente, quem vier atrás que feche a porta, que, neste caso significa, atacar mais uma vez o gravíssimo problema da dívida pública do país e encontrar soluções para voltar a cumprir o Pacto Orçamental (atualmente suspenso) mas que , mais cedo que tarde, aí estará de novo com todo o seu esplendor.

É certo que, entretanto, chegarão os fundos europeus, sob a forma de subvenções ou empréstimos, mas até lá muita água vai correr sob as pontes, a não ser que a UE ceda à chantagem das democracias iliberais da Hungria, da Polónia e, ao que parece, doutros envergonhados parceiros. Só que, neste caso, abrir-se-á de vez a porta para a implosão do projeto europeu.
Por coincidência foi esta semana anunciada a chegada de uma ajuda sob a forma de um empréstimo da UE no valor de 3000 milhões de euros para apoio às despesas do estado português com ajudas ao emprego, em parte já aplicadas (lay-off, subsídios de desemprego, formação, prémios, etc.). Esta verba, corresponde a cerca de 50% do montante atribuído a Portugal (5,9 mil milhões de euros) ao abrigo do programa SURE (Apoio à mitigação de riscos de desemprego em caso de emergência) dotado com 100 mil milhões, dos quais já foram afetados 87,3 mil milhões, distribuídos por 16 estados. Nem todos os estados vão recorrer a este apoio.

O SURE é uma das três redes de segurança aprovadas pela Comissão Europeia e ratificadas pelo Conselho, em abril deste ano, e corresponde à primeira ajuda comum europeia às economias em dificuldade (ao nível do emprego) como consequência da crise pandémica. Não é ainda o Plano de Recuperação e Resiliência de que tanto se fala e ansiosamente se aguarda.
Ora, é precisamente por causa do controlo dos empréstimos e das ajudas a fundo perdido, concedidos pela União, que a classe política, atualmente no poder, não pode correr o risco de ser afastada e tudo fará e aceitará, portanto, para conservar o statu quo, mesmo que o seu aliado de momento tenha de ser um partido, que diga o que disser nas suas formulações públicas, tem um ADN totalmente contrário aos valores constituintes, estruturantes e dominantes do processo de integração europeia.
Só que, infelizmente, a crise (que realmente não passou, antes se agravou, como se verá em breve) não é exclusivo nacional, instalou-se de forma inesperada e no pior momento no seio da própria União Europeia.

O projeto europeu tem agora um novo e complexo desafio, que já não é meramente financeiro (os burocratas europeus encontram sempre soluções criativas quando se trata de dinheiro) mas que ataca, no fundo, o verdadeiro objetivo da integração europeia.
O projeto europeu só tem sentido, como o conhecemos, se os valores essenciais do estado de direito (rule of law) não forem postos em causa, em nenhuma das suas partes constituintes, e se houvesse hesitação neste domínio , a UE, tal como a conhecemos, teria os dias contados.
É verdade que a chantagem de Orban e aliados (mais ou menos envergonhados) pode ser ultrapassada no quadro da legislação europeia. É óbvio que existem planos B e muitos surgiram já, pela voz do húngaro George Soros e até pelo testemunho de alguns especialistas em ‘tudismo’ da nossa praça.
Mas o essencial é que fique claro e se concretize que, neste domínio, não haverá cedências, conciliações ou adiamentos admissíveis.
Seria mau para muitos, no presente, e para todos, no futuro, que tal viesse a suceder.
E Portugal que parece apostado em ser brevemente o estado menos desenvolvido economicamente da União Europeia (já falta pouco!) seria, dadas as suas fragilidades, um dos principais prejudicados.