A escrita

O meu pai dizia que quem não consegue escrever de uma forma clara é porque não tem as ideias esclarecidas na cabeça. Mas isso só em parte é verdade. 

Cada escritor tem o seu modo de trabalhar. Saramago dizia que escrevia uma página por dia. Escrevia, reescrevia, corrigia e ficava pronta. Não voltava a mexer nela. Eça, pelo contrário, mexia no texto em inúmeras ocasiões. Escrevia um conjunto de páginas, mandava para a tipografia, esta devolvia-lhas, emendava, voltava a enviar para a tipografia – e assim sucessivamente até à forma final. José Cardoso Pires também corrigia muito o que escrevia. Mas, em compensação, Agustina escrevia à primeira: enchia folhas manuscritas, com letra pequenina, como se fosse tricot, o marido passava-as à máquina e ela nem as revia.

É preciso dizer que há vários tipos de escrita, e isso reflete-se na forma de trabalhar. Falámos da escrita literária. Mas há a escrita ensaística, por exemplo, que é menos emocional e mais cerebral.

O meu pai, António José Saraiva – como Eduardo Lourenço, falecido esta semana –, era um típico escritor de ideias, um ensaísta. 

No escritor de ideias, a escrita é em princípio menos espontânea, mais maturada, pois precisa de encontrar a melhor forma de expor um pensamento. A forma mais simples, mais clara, de transmitir uma ideia. Enquanto na escrita de ficção a linguagem em certos casos deixa de ser um meio para se tornar um fim, um objeto em si próprio, na escrita de ideias a linguagem é sempre um meio, um instrumento. E aí a clareza é imprescindível.

O meu pai dizia que quem não consegue escrever de uma forma clara é porque não tem as ideias esclarecidas na cabeça. Mas isso só em parte é verdade. Claro que é preciso ter a cabeça arrumada. Mas depois há que dominar a técnica da escrita. E ter uma vocação ‘natural’ para a escrita. A maior parte das pessoas, por muito que treinem, nunca escreverão bem. Como não desenharão bem. Se é verdade que o talento tem de ser cultivado, o cultivo não basta. Um terreno pedregoso nunca dará boas couves, por mais que se adube.

Esquematicamente, os escritores de ideias dividem-se em dois grupos: os que conseguem dizer coisas complicadas de uma forma simples, e os que dizem coisas simples de uma forma complicada.

É que a clareza da escrita tem um risco: se o escritor não tiver nada para dizer, se não tiver ideia nenhuma, a clareza denuncia-o. Expõe à vista de todos o seu vazio. A escrita complicada disfarça a falta de ideias do autor. 

Quando dava aulas na Católica, pedia aos meus alunos como trabalho final um texto de 3 mil carateres. Duas singelas páginas datilografadas. Alguns surpreendiam-se: «Duas páginas? Mas isso é canja…!». Só depois percebiam a dificuldade. Para começar, tinham de ter uma ideia muito nítida do que pretendiam dizer; depois, precisavam de o expor em poucas palavras de um modo preciso e suficientemente expressivo.
Muitos alunos defendem-se hoje escrevendo muito. Enchem os textos de citações, fazem uma amálgama de pensamentos alheios – e aí está um trabalho universitário feito. Um texto curto, que não permita o recurso a citações, que exija uma ideia clara e uma escrita simples, é muito mais difícil de fazer.

Uma boa escrita de ideias deve ter três qualidades: simplicidade, clareza e ritmo. Da simplicidade e da clareza já falei, mas o ritmo também é fundamental. 

Todos temos a experiência daqueles textos que lemos penosamente, a custo, que parecem um pedregulho que temos de arrastar até chegar ao fim. E também já lemos outros textos em que sucede o contrário: não conseguimos parar de ler. A escrita transporta-nos, como se tivesse asas. É o texto que nos puxa em vez de sermos nós a carregá-lo. 

Ora, isso tem muito a ver com o ritmo que o autor consegue imprimir à escrita. Nesse aspeto, há um paralelismo entre a escrita e a música. Há que ser capaz de encadear umas frases nas outras, fazer mudanças de ritmo, combinar frases mais compridas com outras mais curtas, cortantes. Em suma, é aquilo que o músico faz com as notas de uma partitura.

Seria estranho terminar um texto sobre a escrita sem falar de mim próprio e do método que uso.
Num artigo ou num livro, começo por escrever febrilmente, até chegar ao fim. Preciso de ter uma ideia de conjunto do texto, seja um simples ensaio, um romance ou um livro histórico. Faço, assim, uma espécie de esqueleto. Depois, num segundo momento, começo a encher o esqueleto com carne, desenvolvendo aqui, reduzindo ali. E num terceiro momento ocupo-me a aprimorar as frases, a escolher as palavras certas, vejo se encontrei a forma mais fácil e depurada, e ao mesmo tempo mais expressiva, de transmitir o que quero dizer. 

É um pouco como o trabalho do escultor, que numa estátua começa por fazer o vulto, depois aproxima o volume da forma que deseja esculpir, e finalmente cuida dos pormenores, aperfeiçoa o nariz, ajeita as mãos, define os músculos. 

Claro que, mesmo na escrita de ideias, há momentos em que devemos deixar espaço à fantasia. Em que devemos abandonar a frieza da razão e deixar a prosa ganhar esporas. Deixar falar a emoção. E esses momentos são fundamentais para descomprimir o texto e para lhe dar qualquer coisa que a simples razão não transmite.

Na trilogia que acabei de publicar sobre o Estado Novo, há partes que resultam de laboriosas pesquisas, escritas de forma muito racional, quase matemática, demonstrando por A+ B esta ou aquela ideia. Mas outras em que se passa o contrário – como uma descrição do Portugal nos anos 50 que foi escrita de um jato, com recurso à memória, sem consultar nada, oferecendo ao leitor impressões e imagens, nalguns casos recordações de infância. Enfim, escrever é muito difícil, mesmo para quem levou uma vida a escrever. Mas é muito compensador.