Pandemia. Como a classe média-alta foi atingida

A covid não atacou só os pobres, já que a dita classe média-alta também está a sofrer com a crise.

Foi um dos testemunhos mais pungentes que li de alguém que ficou infetado com covid e conseguiu sobreviver, apesar de ter estado a milímetros de ser entubado. António Marques, diretor de anestesiologia, cuidados intensivos e emergência do Hospital de Santo António, no Porto, e responsável pela equipa de gestão da covid-19, contou no último SOL pelo que passou e as marcas com que ficou. António Marques, entre muitas revelações, explicou como a mão de um enfermeiro o ajudou a superar um momento dramático e como não esquecerá uma enfermeira que aceitou sair da zona não covid para ir ter com ele para lhe tirar sangue, já que ninguém o conseguia fazer – as suas veias dificultam a vida a quem tem de lhe tirar sangue.

Além do drama, o médico revelou também a situação complicada em que estão muitos colegas seus que ganhavam muito no privado, quando tinham consultas, e que deixaram de receber o que quer que fosse, pois deixaram de ter trabalho. Alguns, conta, acabaram por se suicidar.

Já ontem, no jornal i, Maria do Céu Cunha, fundadora da associação Sol Fraterno, explicou como nos últimos tempos lhe têm pedido ajuda pessoas da classe média-alta, que ficaram apenas com dinheiro para pagar a renda e as despesas inerentes, mas sem possibilidades de comprar comida. A pandemia está a fazer muitos mais estragos do que se pensa.

Vejamos, por exemplo, os funcionários da TAP, muitos deles privilegiados em relação aos demais trabalhadores, que se encontram agora no desemprego e veem o seu poder de compra reduzido drasticamente. A covid não atacou só os pobres, já que a dita classe média-alta também está a sofrer com a crise.

Em relação à companhia aérea portuguesa, parece-me uma utopia não querer ver que vai ter de seguir o caminho de muitas outras que tiveram de emagrecer e sujeitar-se às regras de mercado. Sempre fui um defensor da TAP, apesar de tantas vezes ter sido maltratado. Recordo-me de viagens que fiz para Maputo e quando pedia uma garrafa de água de litro e meio, para não estar sempre a tocar à campainha, recebia uma resposta negativa e de mau tom. E estamos a falar da área do avião mais cara.

Muitas outras histórias me contaram, idênticas, em que quem comprava dois bilhetes em executiva tinha de viajar separado porque muitos dos lugares estavam ocupados por pilotos em dia de folga. Também é justo dizer que em muitos voos, fosse em executiva ou em económica, encontrei excelentes tripulações e as viagens correram de forma irrepreensível.

Mas todos sabemos que o mundo está mais pobre e que os vícios de rico são coisa do passado. Muitas empresas, se excluirmos as do Estado, tiveram de se adaptar às novas regras e baixaram os ordenados – e não conheço uma única pessoa que goste de ver o seu salário reduzido. Então, por que razão a TAP há de continuar com os mesmos ordenados e o mesmo número de trabalhadores de quando havia trabalho, apesar de a empresa dar sistematicamente prejuízo?

Não podemos nem devemos ser miserabilistas e querer o mal dos outros mas, quando a crise chega, não podem uns pagar para os outros continuarem na mesma.

 

P.S. Ontem, o i deu a seguinte notícia: 2020 já é o ano com mais mortes no país desde que há registos. Morreram já mais de 114 mil pessoas. Os dados estão disponíveis na plataforma do Ministério da Saúde, mas muitos jornalistas não se aperceberam disso e davam conta apenas do relatório do INE que analisa somente os números de mortes desde março. Que não queiram ler a informação que os outros publicam, é um problema de cada um. Agora, que não vejam os resultados oficiais é que é muito estranho, pois sujeitam-se a fazer o jogo de quem não gosta de revelar a verdade em toda a sua extensão.

vitor.rainho@sol.pt