O SNS tem muito que se lhe diga

O Serviço Nacional de Saúde e particularmente os seus profissionais merecem a gratidão de toda a comunidade e todos os nunca demais reiterados elogios. Mas não é nem pode ser sacralizado ou isentado de críticas.

Houve uma altura em que os ouvi dizer que a coisa não estava a correr bem, que era preciso considerar a entubação e eu pensava ‘estou tramado’».

O desabafo de António Marques em entrevista ao SOL (edição de sábado passado) impressiona ainda mais por vir do diretor de anestesiologia, cuidados intensivos e emergência do Hospital de Santo António, no Porto, também responsável pela equipa de gestão da covid-19 naquela unidade hospitalar.

Que explicou aquele sentimento num momento particular daqueles dias em que esteve infetado com o novo coronavírus: «Porque quando uma pessoa é entubada abre-se uma porta no organismo para o exterior e há sempre o risco de se apanhar uma infeção bacteriana, as chamadas infeções hospitalares».

Noutro passo da mesma entrevista, António Marques confessa só ter tentado interferir no trabalho dos seus colegas quando o quiseram ventilar. Fez tudo para o evitar. Até chegar ao ponto em que pensou ser já inevitável. «Por sorte (vamos chamar-lhe assim…), não precisei de ser ventilado. Na altura em que os meus colegas estão para me ventilar, entrou um doente covid em muito pior estado do que eu e foi ele quem foi para a máquina». Havia mais ventiladores, mas só uma equipa de acompanhamento. E logo avançou a explicação sobre todos os riscos da ventilação, a violência para os pulmões especialmente de doentes com histórico de outras maleitas ou fumadores, as sequelas futuras.

O Serviço Nacional de Saúde e particularmente os seus profissionais merecem a gratidão de toda a comunidade e todos os nunca demais reiterados elogios.

Mas não é nem pode ser sacralizado ou isentado de críticas.

Uma das questões que se tem colocado nestes tempos de pandemia é a discriminação ou passagem dos doentes não covid para segundo plano.

Aliás, os números de atos médicos adiados, cancelados, reavaliados é gigantesco e inexplicável. Como o aumento da mortalidade para além dos casos covid.

Na verdade, os problemas do SNS, ao fim de décadas de desinvestimento continuado, são muito graves, como graves são as suas insuficiências.

E estão subjacentes a todo o discurso de um dedicado médico como António Marques, porque, como ele assume, «nestas coisas, é pior o conhecimento do que a ignorância».

Sempre que estive internado por razões de saúde foi em hospitais públicos e entregue aos cuidados de médicos e enfermeiros cujo profissionalismo e competência me merecem as melhores referências.

Nessas alturas, e tal como António Marques, também eu me entreguei nas mãos dos seus colegas e confiei. Totalmente.

É por isso que o problema atual do SNS é gravíssimo.

Porque, na verdade, o que está em causa nestes tempos de pandemia ou covid, é que, não obstante os justos elogios e aplausos aos profissionais da Saúde e do SNS, há efetivamente um problema de confiança dos utentes ou potenciais utentes nessas mesmas unidades de saúde do SNS.

Que tem todo o fundamento.

Diga-se o que se disser, centros de saúde, unidades de saúde familiar e hospitais deixaram de ser o primeiro lugar de recurso de quem está ou fica doente.

Seja por medo da covid ou simplesmente por qualquer outra desconfiança, a procura de auxílio médico nos serviços do SNS passou a ser o último recurso de quem, por qualquer motivo, não se encontra bem.

Morrer da cura é o que mais se teme.

E sucedem-se as notícias de vítimas mortais de infeções contraídas nos hospitais, não raro em pessoas internadas por doenças que, por si só, não teriam consequências de maior.

O problema não é exclusivamente português. Mas Portugal, também nesta matéria, está na cauda da Europa.

Sem que ninguém reaja, nem, que se saiba, se há ou não procedimentos criminais, averiguações ou inquéritos que permitam apurar responsabilidades.

Num país desenvolvido, não é normal que os doentes morram vítimas de doenças que apanham onde é suposto procurarem cura e serem tratados.

Em Portugal, pelos vistos, é.