Real Sociedad. ‘Ahupa Txapeldunak’

Os donostiarra estão novamente na onda do futebol espanhol. A sua história está cheia de nomes fictícios e comporta um título fantasma.

Amanhã, pelo início da tarde, a Real Sociedad recebe o Eibar para a 18.ª jornada da Liga Espanhola. Numa prova atípica, como vão sendo quase todas desde que o bicho desta nova maleita desatou a destruir as figuras criadas por Deus à sua imagem e semelhança, a tabela classificativa parece ter sido desenhada a trouxe-mouxe: Atlético de Madrid, orgulhosamente invicto na frente (26 pontos); Real Sociedad logo atrás, com menos um ponto; Villarreal em terceiro (21); Real Madrid em quarto (20); e Barcelona em nono (14), arrastando tristemente as suas vestes empobrecidas.

Mas era da Real que eu queria falar. Há dez anos, ainda sofria as angústias de uma descida de divisão, mais dolorosa ainda por ser a primeira desde meados dos anos 60. Agora surge de novo pujante, sonhando com as proezas de 1980-81 e de 1981-82, épocas em que ganhou os seus dois únicos títulos de campeão. Recordo-me de estar em Alvalade, em março de 1983, para assistir à vitória do Sporting por 1-0 sobre uma equipa basca de faca na liga. De um lado, a magia de Oliveira, Manuel Fernandes e Jordão; do outro, a segurança de Arconada na retaguarda da fúria de Bakero, Zamora e López Ufarte. 1-0 em Lisboa, 0-2 em San Sebastián, ou Donostia, na língua basca. O campeão de Espanha seguiu para as meias-finais e caiu aos pés do futuro vencedor do troféu, o Hamburgo. Em Alvalade, os adeptos bascos gritavam: «Aupa Txapeldunak!» («Avante, Campeão!»)

 

O título fantasma

As origens da Real são tão antigas que se perdem autenticamente na noite dos tempos. Já existia em 1903, apesar de a data oficial da sua fundação estar fixada no dia 7 de setembro de 1909, com o nome inicial de Sociedad de Foot-ball de San Sebastián, uma espécie de excrescência de um grupo denominado San Sebastián Recreation Club.

O País Basco foi o berço do futebol espanhol. Por óbvia influência inglesa, já que os contactos comerciais eram intensos na zona, e também porque as águas do golfo da Biscaia eram muito procuradas pelos barcos de pesca britânicos, que depois utilizavam os portos da Guipúscoa. Desde 1903 que a Espanha tinha uma competição nacional organizada, a Copa del Rey, disputada por eliminatórias, que decidia o campeão nacional. Uma regra com o seu quê de curioso irritou sobremaneira os fundadores da Real Sociedad: para poderem participar na Copa tinham de ter um ano de existência legalizada. Decidiram-se por uma trampolinice: inscreveram-se sob o nome de um clube vizinho e amigo, El Club Ciclista de San Sebastián e, com esse nome, foram derrubando adversários atrás de adversários e chegaram à final de Madrid contra o Español de Madrid, vencendo por 3-1 no velho Estádio O’Donnell. No fundo, é o título fantasma que a Real Sociedad conquistou de facto, mas não pode exibir na placa prateada das suas conquistas.

O problema não se resolveu para a edição seguinte da Copa del Rey. O tal ano obrigatório não se cumprira ainda por completo. Os dirigentes da Real reprisaram a facécia: desta vez, o guarda-chuva chamou-se Vasconia Sporting Club. Os primeiros davam os jogadores, os segundos forneciam o nome e a respetiva legalidade formal. A história só por pouco não se repetiu. O_Vasconia arrancou como uma locomotiva e atingiu a final, nessa época a três, em poule decisiva, com a presença do Athletic Bilbao e do Madrid Foot-ball Club, mais tarde Real pelos bons auspícios do Rei Afonso XIII. No Estádio Ondarreta, em San Sebastián, os rivais bilbaínos foram mais fortes e ganharam por 1-0. A partir daí, a Real Sociedad conquistava o direito de entrar na competição erguendo bem alto o seu próprio nome.

Durante essas épocas iniciais da sua existência, a Real Sociedad mostrou aos seus adversários aquela que seria a sua primeira grande estrela, um extremo-direito inglês chamado George McGuinness. Nascido no bairro de Toxteth, em Liverpool, em outubro de 1887, George estudou no Saint_Francis Xavier’s College e jogou num clube entretanto extinto, o Harrowby.

McGuinness só fez nove jogos com a camisola dos bascos – Real Sociedad/Ciclista/Vasconia –, mas marcou sete golos fundamentais para o sucesso do clube que mudava de nome com quem muda de camisa, um deles contra o Español de Madrid, na final ganha, dois contra o Madrid FC, na fase final do ano seguinte. Tinha 23 anos e trocou o futebol pelo ensino, tendo sido professor na St. Laurence’s Roman Catholic School de Birkenhead, em Merseyside, perto da sua Liverpool natal. No dia 2 de setembro de 1914 foi chamado para servir no 30.º de Infantaria do King’s Regiment. Cinco meses mais tarde estava a bordo do SS_Invicta a caminho da frente de batalha, em França. Foi abatido pelos alemães no dia 1 de julho de 1916, na Batalha do Somme.

 

Um toque real

Afonso de Bourbon, ou Afonso XIII, o Africano, que subiu ao trono espanhol em 1902, tornou-se responsável pelas dezenas de Reais que pululam pelo futebol dos nossos vizinhos. Por causa dele, também a Sociedad de Foot-ball teve o direito de exibir, a partir de 1910, o título de Real Sociedad.

O tempo passou e, como não poderia deixar de ser, os responsáveis pelo futebol em Espanha tomaram a decisão de criar uma liga, isto é, uma competição à maneira dos ingleses, decidida em jogos de todos contra todos, utilizando o sistema de pontos. A partir de 1929, o campeão passou a ser o vencedor dessa nova prova que coabitava, tal como ainda hoje, com a Copa del Rey. A_Real Sociedad ficou nos registos como um dos dez clubes que disputaram a edição inaugural do I Campeonato Nacional de Liga de Primera División. Daí até à época de 1967-68 esteve presente em 23 dos 26 campeonatos realizados. Desceu e voltou a subir, desta vez para se manter 39 anos consecutivos na I Divisão (2006-07 foi, de novo, ano de despromoção).

Nesses 39 anos, os txuri-urdin, ou azuis e brancos, em basco – o equipamento da Real nunca se alterou desde a fundação –, guardam na memória eterna os títulos conquistados no início dos anos 80, a fase mais destacada do futebol basco, que alavancou dois campeões em quatro anos – Real Sociedad (1980-81 e 1981-82) e Athletic Bilbao (1982-83 e 1983-84). Treinados por um natural de Eibar chamado Alberto Ormaechea Ibarlucea, os rapazes de Donostia atingiram o ponto mais incandescente da sua já centenária existência. «Beti maite Donostiarra!» Ou como quem diz: «Amamos-te muito, gente de San Sebastián!»