Não vos deixais morrer assim!

Sabes uma coisa? Deixei de beber uísque. Dava-me cabo da memória. E se há algo que não quero é correr o risco de me esquecer de ti.

Incansável, a morte teima em visitar-nos sem ser convidada, velhacamente escondida nas esquinas do dia-a-dia. De pouco me serve querer gritar como Vinicius: «Ah, meus amigos, não vos deixeis morrer assim!». Já nem sei se isto é um grito ou apenas um lamento. O telefone tocou, a voz do Carlos Pereira Santos, lá no Porto. Ouvi-a ao mesmo tempo que ele engolia as lágrimas repletas de sal. Dizem que o sal se torna mais grosso à medida do tamanho da dor que se desfaz na água dos olhos quando se desata o nó na garganta. Não sei. Não percebo nada da salinidade das lágrimas mas conheço de cor e desde sempre o seu sabor. De nada vale a súplica: «Não morrais amigos meus!». A minha súplica diária que os meus amigos não escutam, que o Carlos Machado não escutou quando foi para casa, depois de fechar o jornal, ele que era um daqueles chefes à moda antiga, a barriga larga de encaixar na secretária, e se deitou para dormir um sono sem manhã seguinte. De que me serve agora dizer-te?:  Não morras, Carlos! Porra! Tu não és de morrer. És um edifício, és um monumento, cada abraço teu tem o conforto de quatro paredes dentro das quais não entra nem o frio nem o vento que a angústia teima em soprar! Como ordenar-te?: Não te admito que morras porque nos fazes falta e nem sequer tens a mínima ideia da falta que nos fazes?! Não precisava de falar contigo todos os dias para sentir, mesmo à distância, a tua pacífica segurança. E, agora, fico aqui com esta mágoa nas mãos que só me apetece enfiá-las nos bolsos, mantê-las numa prisão de gestos, encerrá-las nos punhos de um fundo de raiva ainda por conter. Só que, em seguida, os dedos fogem-me como pássaros que vão pousar nas letras do qwerty. Pássaros sem pés como os de Dan Elliot, pássaros sem pés que dormem no vento da minha crescente solidão, cada um de  vocês, amigos meus, cada um de vocês que tinham ordens expressas para não morrerem e desobedeceram a elas sem respeito nenhum por aquilo que me  limito a pedir-vos, assim com jeitinho, com ternura, cada um de vocês, dizia, abrindo buracos na planície mais e mais seca das memórias de vós. Olhem, durmam ao vento enquanto esperam que volte a sentar-me  à vossa mesa confessando-me demasiado cansado para esticar estes braços que são asas que um deus preguiçoso se esqueceu de acabar e voar nos céus da nossa ilusão de pequena eternidade.

Repito-me nas palavras que já foram escritas, todas elas bem mais intensas do que as que eu possa desenhar: «O ano que passou levou tantos de vós e agora os que restam se puseram mais tristes; deixam-se, por vezes, pensativos, os olhos perdidos em ontem, lembrando os ingratos, os ecos de sua passagem; lembrando que irão morrer também e cometer a mesma ingratidão».

Em Águeda, na Rua de Baixo, em casa do Ti Canas, numa noite gelada de fevereiro, primeiro sábado de fevereiro como era de costume, ficámos numa conversa coletiva que abrangia todos os pedaços das nossas vidas, mesmo aqueles mais pequenos, regados pela sabedoria que a profissão que amámos como poucos nos trouxera. Guardo a fotografia, lado a lado com o Vítor_Queiroz, na parede vaga da minha melancolia. Sabíamos de cor as saídas dos labirintos dos ânimos pessimistas, abertas de par em par pelo som de uma gargalhada comum. Há pouco mais de um ano, na altura da fase final da  Liga das Nações, encontrei-te nas_Antas, atrapalhado. Havia duas credenciais com o mesmo nome, foste desfazer a confusão e eu, incrédulo perante a tua solicitude: «Mas, Carlos, como pode isso acontecer? Tu és inconfundível!». Agora, pergunto com a mesma desconfiança: «Mas morreste como, se ainda ontem estavas vivo?». Acredita: ficarei o tempo que for preciso à espera da tua resposta. Exijo-te que ela seja convincente. O facto de teres partido para esse lugar da saudade infinita não te exime de prestares contas aos que precisam de saber notícias de ti.

«Os sinos da basílica batem horas que não conto/um menino arrisca a vida no trapézio do balouço/pavões aflitos gritam ao desespero/pombos distraídos voam ao desencontro/alguém chama por mim e eu não ouço/alguém me dá qualquer coisa e eu não quero!». Escrevi este pedaço de medíocre poesia há muitos anos, mas trouxeste-mo à lembrança. Façamos de conta que to ofereço, nem que seja para te distraíres um pouco na última de todas as viagens. É sempre bom levar um livro debaixo do braço quando partimos para algum lado, tal como resolveste fazer agora sem anúncio prévio. Passas a ser mais um dos mortos em mim e eu queria também ter resposta à pergunta que repito como uma lengalenga infantil: afinal quem nos matou? «Amai, amigos meus! Amai em tempo integral, nunca sacrificando ao exercício de outros deveres, este, sagrado, do amor. Amai e bebei uísque». Sabes? Deixei de beber uísque. Dava-me cabo da memória. E se há algo que não quero suportar é correr o risco de me esquecer de ti.

afonso.melo@newsplex.pt