Numa pastelaria em Belém…

O que mudou, também, para pior, foi a qualidade média dos candidatos com os quais Marcelo irá defrontar-se. 

O Governo dispõe de dois ‘seguros de vida’: o PCP e Marcelo Rebelo de Sousa, que, tarde e a más horas, confirmou ser novamente candidato numa pastelaria em Belém. O ‘segredo de Polichinelo’ – ou o ‘tabu’ como muitos gostam de invocar –, ficou desvendado desde a visita à Autoeuropa, quando o primeiro-ministro, inopinadamente, resolveu tirar o ‘coelho da cartola’ e, prazenteiro, antecipar o seu apoio à esperada recandidatura presidencial.
A partir dessa originalidade, que roubou palco a Marcelo, e eliminada a dúvida, se esta porventura ainda existisse, só a ala esquerda do PS reagiu, apoiando depois, informalmente e sem grande entusiasmo, a candidatura ‘espontânea’ da Ana Gomes. 

Se em 2012 Marcelo afirmava sobre as presidenciais que «há de haver um momento em que a Providência, que é sábia, me há de dar o sinal. Sim ou não», desta vez, ou a divina Providência se enganou no destinatário e iluminou primeiro António Costa, ou o inquilino de Belém achou que não valia a pena maçar-se com o anúncio atempado de algo que estava ‘escrito nos astros’.

Marcadas as presidenciais, em data idêntica à de 2016, o que mudou foi o ‘timing’ escolhido por Marcelo para alinhar na ‘grelha de partida’, a curta distância da consulta eleitoral, ao contrário do que fez, em outubro desse ano, quando compareceu em Celorico de Basto para anunciar a sua candidatura. 

Resultado: com as festividades da quadra de permeio, mesmo mitigadas, e as limitações do coronavírus, a campanha propriamente dita será um ‘ai se te avias’ nas televisões, que vão saturar a antena de debates, a dois ou a vários, em contrarrelógio.

O que mudou, também, para pior, foi a qualidade média dos candidatos com os quais Marcelo irá defrontar-se. Antes, à esquerda, ainda tinha Sampaio da Nóvoa, um colega académico que se eclipsou depois de ter sido colocado, em 2018, como representante permanente de Portugal junto da UNESCO; ou Maria de Belém Roseira, uma histórica socialista, que chegou a ser presidente do partido, mas de quem o partido se distanciou, ao decidir não apoiar nenhum candidato. 

O PS, desde que Jorge Sampaio aproveitou a ‘alavancagem’ do Município de Lisboa e se candidatou – aliás, sem pedir licença ao partido –, não consegue eleger um Presidente da sua cor. Um óbice que, talvez, venha a ser corrigido em 2026, com Guterres livre da ONU ou António Costa do Governo.

Desta vez, porém, os candidatos à esquerda afinam pelo mesmo diapasão, que é, no fundo, beneficiarem do ‘tempo de antena’ inerente a quaisquer eleições. O único possível incómodo para Marcelo só poderá vir, à direita, de André Ventura, que dá sinais de não tencionar poupá-lo.

Com sondagens favoráveis e a vantagem de ter estado sempre em campanha, Marcelo confiará decerto, cumprida a ‘formalidade’, ser reeleito à primeira volta, faltando apenas apurar se a votação ficará aquém da obtida por Mário Soares para o segundo mandato, algo que secretamente deseja, ao que dizem os seus biógrafos. 

E como será o segundo mandato? Tudo indica que será igual ao primeiro, embora haja uma certa tradição de, sem possibilidade de repetir o mandato, o segundo ser ‘diferente’. Mas o balanço do atual exercício de Marcelo não augura grandes alterações, até pela natureza das coisas. 

Ele próprio preveniu que «quem avança é exatamente o mesmo que avançou há cinco anos». Não podia ter sido mais sincero. O que significa que tenciona preservar o atual ‘modus vivendi’ com o primeiro-ministro, com quem coabita sem a conflitualidade que caracterizou, por exemplo, a relação de Cavaco com Sócrates, ou mesmo a de Sampaio com Santana Lopes. 

Entreajudam-se com assinalável cumplicidade, e a crise sanitária mais contribuiu para estreitar esses laços.
Marcelo tem agido várias vezes como ‘primeiro-ministro’, salvando Costa dos sarilhos de uma governação errática e amiúde incompetente, e este não se importa, à boleia da popularidade presidencial, vinda do ofício de comentador televisivo.

Com o suporte parlamentar negociado com o PCP, teoricamente a prazo de legislatura, o primeiro-ministro sente que possui um ‘contrato não escrito’ que a outra parte não terá interesse em romper, para se apresentar aos olhos do eleitorado, nas próximas autárquicas ou legislativas, como uma espécie de ‘salvador’ da estabilidade, depois de o BE se ter apeado da ‘geringonça’.

Com este ‘atestado de bom comportamento’, o PCP espera ‘levar a água ao seu moinho’ e recuperar algum eleitorado desavindo, melhorando o seu posicionamento em relação ao Bloco. 

Como bem lembrava o historiador Rui Ramos, o PCP sempre foi um partido ‘encostado’ ao poder, quando não foi mesmo convidado a exercê-lo. Andou de ‘braço dado’ com os militares de abril. Teve Álvaro Cunhal num governo provisório e chegou a dispor de um primeiro-ministro ‘às ordens’, com Vasco Gonçalves, um oficial de carreira que lhe era inteiramente afeto. 

Logrou, ainda, à época – o que não foi pouco –, colocar a descolonização na órbita soviética, com a ajuda de outros oficiais, como Rosa Coutinho em Angola. 
O certo é que a URSS se desmoronou tal como o Muro de Berlim, os principais partidos comunistas europeus extinguiram-se, mas o PCP sobreviveu a todos e ainda se dá ao luxo de montar um congresso em Loures, ignorando olimpicamente o elevado risco sanitário, em louvor do marxismo-leninismo e do estalinismo que lhe vão na alma. 

Marcelo Rebelo de Sousa-candidato já não irá a tempo de passear-se na Festa do Avante!, mas não subestima a influência de um partido que, embora em forte declínio eleitoral, ainda domina boa parte do aparelho sindical e conserva uma razoável capacidade de mobilização. 

Com o PS dependente do suporte parlamentar comunista, o grande comício de Mário Soares na Alameda, em 1975, contra o avanço revolucionário protagonizado pelo PCP e seus satélites, há muito que não passa de uma página rasgada no livro de memórias do Largo do Rato.

Neste contexto, o segundo mandato de Marcelo só não imitará à risca o primeiro se as circunstâncias mudarem por um qualquer desígnio do destino. 

Fora isso, sem contrapesos, com a Justiça mais controlada, os militares e forças de segurança obedientes, a maioria dos media ‘domesticada’, a ‘bazuca’ de Bruxelas, e uma oposição fraca à direita, o regime está a fechar-se sobre si próprio.

Por este andar, temos garantida a ‘lanterna vermelha’ no clube europeu… de mão estendida.