Balsemão e Camarate

Ponho as mãos no fogo por Balsemão. E digo-o não só pelo que conheço da sua pessoa mas também pelas conversas que tivemos sobre o assunto e pela liberdade que sempre me deu para escrever sobre ele.

Quando caiu o avião que transportava Sá Carneiro, eu estava em casa – e soube do desastre pela voz de Freitas do Amaral. A emissão da RTP foi interrompida – e Freitas, que era o número dois do Governo, transmitiu ao país com ar grave a infausta notícia.

Não sou dado a teorias da conspiração e desde o princípio achei que se tratava de um acidente. Até por um pormenor que na altura escapou a muita gente: Sá Carneiro tinha lugares marcados no avião da TAP, e a sua secretária só os desmarcou quando ele já estava dentro do Cessna. Ora, nesse intervalo, ninguém teria tempo para ir a correr pôr uma bomba no aparelho.

Este facto, por si só, punha de parte a tese do atentado.

Nessa altura, o diretor do Expresso era Augusto de Carvalho – que, segundo ouvi recentemente, terá recebido ordens de Francisco Pinto Balsemão (que era o proprietário do jornal mas estava no Governo) para nunca falar em atentado.

Não posso confirmar nem desmentir esta informação, e Augusto de Carvalho já não faz parte dos vivos. Mas posso dizer que, quando assumi a direção do Expresso, dois anos e meio depois, Balsemão não me impôs qualquer limitação a esse nível (nem eu a aceitaria), e escrevi vários editoriais sobre o tema, até porque houve imensas comissões de inquérito que o Expresso acompanhou e comentou.

A única limitação que Balsemão me pediu para respeitar nada teve a ver com Camarate nem com aviões: solicitou-me que não aceitasse colaborações de três pessoas – Artur Portela Filho, Marcelo Rebelo de Sousa e Augusto Cid. O primeiro porque o tinha «ofendido gravemente», o segundo porque o tinha «traído» e o terceiro porque o «desenhava sem nariz nem olhos».

Deve dizer-se que Augusto Cid era na altura – e foi até à morte – o principal defensor da tese do atentado.

Conheci-o bem. Nos primeiros anos do SOL, publicou aqui cartoons – e falámos várias vezes. Além de não ter dúvidas de que Camarate fora um atentado, ele apontava severamente o dedo a Balsemão – se não como mandante do crime, pelo menos como cúmplice.

Nessas conversas, Cid passou-me para as mãos muitos papéis, entre os quais relatórios confidenciais sobre a queda do Cessna. Li-os com atenção, e mudei de opinião sobre o caso: convenci-me da tese de atentado. Retive um pormenor revelador: o vidro do cockpit tinha sido arrancado por uma força de dentro para fora. A deformação dos parafusos que fixavam o vidro mostravam-no sem margem para dúvidas. Ora, isso indiciava uma explosão no interior da aeronave.

Mas persistia a razão que me levara de início a pôr de parte a ideia de atentado: como houvera tempo para colocar uma bomba no Cessna, se Sá Carneiro só tinha decidido viajar nele à última hora? A solução, aqui, acabou por se revelar simples: a bomba não se destinaria a ele mas a outro ocupante do avião. Muito provavelmente ao ministro da Defesa, Amaro da Costa (que fora, julgo, quem alugara a aeronave e oferecera a boleia a Sá Carneiro). Assim, as peças já encaixavam.

Acontece que, se a minha opinião relativamente ao desastre mudou, a minha convicção sobre a inocência de Balsemão manteve-se. Posso mesmo dizer hoje que ponho as mãos no fogo por ele. E digo-o não só pelas conversas que tivemos, pela liberdade que sempre me deu para escrever sobre o assunto, mas também pelo que conheço de Balsemão – que jamais se envolveria num ato criminoso.

É possível que, no momento muito quente que se vivia, tenha dado ordens ao Expresso para não deitar achas na fogueira. É natural que o Governo – que ele passara a chefiar – quisesse pôr rapidamente uma pedra sobre o assunto, para os espíritos acalmarem e as eleições (que teriam lugar daí a dias) poderem realizar-se em clima de tranquilidade.

Nisso acredito. Mas não só Balsemão como todo o Governo e o Presidente da República, Ramalho Eanes, o desejariam. Não quereriam dar gás a uma hipótese que incendiaria os ânimos. Mas daí a algum deles ter alguma coisa a ver com a queda do avião vai um fosso intransponível.