Os meus leitores sabem que normalmente não comento entrevistas nem sondagens.
São ‘factos’ demasiado passageiros para merecerem uma crónica.
Comento hoje a entrevista de Marcelo Rebelo de Sousa à SIC pela extrema importância de um dos temas tratados: a morte de um cidadão ucraniano nas instalações do SEF no aeroporto de Lisboa.
A entrevista começou de um modo invulgar.
Depois da resposta de Marcelo a uma primeira pergunta do jornalista Ricardo Costa, este comentou, perentório: «Peço desculpa, mas isso não é verdade!».
Não é normal ver-se um jornalista dizer a um Presidente da República, de forma direta e sem rodeios, que não é verdade o que ele disse.
Ricardo Costa é um jornalista competente e muito esperto, que já tenho elogiado em várias ocasiões, mas que nesta entrevista se excedeu.
Talvez com a preocupação de mostrar independência, assumiu uma postura demasiado agressiva, que não se justificava.
Sobretudo no início.
E Marcelo Rebelo de Sousa reagiu mal.
Retraiu-se.
Em lugar de reforçar a postura de Estado, perdeu-a.
E começou a responder como o cidadão que, apanhado numa alhada, se quer ‘safar’ de qualquer maneira.
Interpelado sobre as razões por que levou nove meses a reagir à morte do ucraniano, o Presidente disse que falou «inúmeras vezes» do assunto com o primeiro-ministro – sugerindo que, se havia culpa, então era deste, pois não ligara às suas repetidas chamadas de atenção.
Ou seja: Marcelo atirou a responsabilidade para António Costa.
Perguntado por que razão não o disse na altura, Marcelo respondeu candidamente que nenhum jornalista lhe fez a pergunta. Ora, Marcelo, que fala de manhã, à tarde e à noite, precisava que um jornalista lhe fizesse a pergunta para dizer o que pretendia dizer? Para passar uma mensagem importante, o Presidente necessitava da ajuda dos jornalistas?
O caso é que, depois de passar a responsabilidade para António Costa, Marcelo passou-a também para os jornalistas.
Mas as coisas não ficaram por aqui.
Repetindo o que dissera antes, Marcelo reafirmou que é preciso saber se a morte do ucraniano foi um caso isolado ou um «problema sistémico», ou seja, resultante de uma prática reiterada do SEF.
Deste modo, o Presidente lançou a suspeita, sem provas, sobre todo um organismo do Estado.
E já não falo do pingue-pongue verbal com Eduardo Cabrita, através de interpostas pessoas.
Mas se o silêncio que rodeou este caso durante nove longos meses é inexplicável, a condenação do SEF sem explicações também não é aceitável.
Passou-se, de repente, do oito ao oitenta: do silêncio à algazarra.
Que eu saiba, é a primeira vez que ocorre uma morte nas instalações do SEF.
Tratou-se, portanto, de uma situação excecional.
Aliás, mesmo numa ditadura, uma morte nas instalações de uma polícia nunca é normal.
Na sede da PIDE, onde a tortura estava institucionalizada (sobretudo para os comunistas), era muito raro morrer um preso.
Assim, é necessário perceber o que se passou.
Recorde-se que o ucraniano não foi morto por um agente, num eventual momento de desvario, mas por três agentes.
Ora, o que aconteceu de diferente do habitual neste caso para ter aquele desfecho?
É preciso que isso seja explicado e fique perfeitamente claro.
Por outro lado, fará sentido que a reestruturação do SEF seja feita a seguir a uma morte, com a emoção que esta despertou?
Fará sentido que se ponha em causa a continuidade do SEF, que é uma instituição que dispõe de uma larga experiência em matéria de migração, ainda por cima numa altura em que a imigração constitui um problema delicado a nível nacional e europeu?
Recordo os males que resultaram da extinção da Guarda Florestal com sua integração na GNR, desperdiçando-se um grande capital de conhecimentos (julgo, aliás, que esta medida vai ser revertida).
Não cometamos o mesmo erro.
Finalmente, não vamos agora pensar que os imigrantes são todos uns mártires e os agentes da autoridade são todos uns algozes.
A diabolização das polícias nunca deu bom resultado.
Investigue-se até ao fim, explique-se bem o que efetivamente se passou, indemnize-se convenientemente a família; mas não se mude tudo em função deste episódio bárbaro.
Agir a quente, tomar decisões a quente em casos como este, de grande impacto mediático e emocional, geralmente não corre bem.
Voltando a Marcelo Rebelo de Sousa, julgo que, dada a sua agilidade oratória, ele encarou a entrevista com ligeireza, achou que era ‘canja’, e preparou-se mal num assunto que era de extrema delicadeza.
Depois, no estúdio, foi surpreendido pela agressividade do jornalista.
E não reagiu com a ‘gravidade’ exigível a um chefe de Estado (ou a um Presidente recandidato), comportando-se como um homem acossado – que queria sobretudo escapar-se, ver-se livre de responsabilidades, e na sua aflição disparou em todas as direções.
Responsabilizou o primeiro-ministro, responsabilizou o ministro, responsabilizou o SEF, até responsabilizou os jornalistas – só não assumiu a sua própria responsabilidade.
E não o digo com prazer, pois trabalhei com Marcelo, falei com ele horas sem fim e mantemos uma relação cordial.
P.S. – Escrevi que o tom usado nesta entrevista ao PR foi desnecessariamente agressivo antes de ver a entrevista de João Adelino Faria a André Ventura. Aquilo foi uma entrevista ou um ataque desvairado? Acontece que Ventura reagiu melhor do que Marcelo e respondeu aos ataques com um sorriso, não se deixando acantonar.