Na escuridão de Mansilla de Las Mulas

Selecionador de Espanha em 1923, Joaquín Heredia Guerra foi fuzilado pelos falangistas nos arredores de León.

Já passava da meia-noite. Essa calada hora que Victoriano Crémer definiu assim: «Hora de brujas, de beatas y de supersticiones». Foi Victoriano que não calou. Não calou a morte de Joaquín Calixto Heredia Guerra, em Mansilla de Las Mulas, quando ainda não nascera o sol do dia 21 de novembro de 1936.

Mansilla de Las Mulas é perto de León. Heredia Guerra era funcionario da_Compañia de Ferrocarriles del Norte e tinha quarenta anos. Fora acusado de ser maçom, de recolher fundos para a Izquierda Republicana e de haver presidido a um comício no qual discursara o poeta e escritor Manuel Azaña, perigosíssimo extremista. O seu julgamento foi uma farsa. Heredia evidentemente condenado e sentenciado teve de cumprir pena no Campo Principal de Prisioneros del Complejo Concentracionario de León, instalado provisoriamente no Convento de San Marcos durante a Guerra Civil de Espanha. Deitado num catre piolhoso, os seus pesadelos tornaram-se realidade nessa noite maldita de novembro. Um bando de falangistas escancarou a porta da sua cela. A cela que repartia com Victoriano Flores. «Fue como una revelación. Y se le rompieron los cordajes de la templanza, de la discreción, del valor. Y dio tal grito, que todos nos estremecimos como si nos hubieran arrancado la piel. ‘¡Me van a matar! ¡Me van a matar! ¡Ayudadme!’».

Victoriano nunca deixou que Heredia fosse esquecido. Escreveu sobre ele sempre que pôde. Contou de viva voz o desespero daquele momento macabro em que o arrastaram pelos corredores gelados e ele fazia gestos desesperados como se quisesse agarrar-se às paredes. Joaquín Calixto de Heredia Guerra foi levado para uma quinta particular, La Mata del Moral, propriedade de um crápula chamado Octavio Álvarez Carvallo, amigo de Franco. Calados os gritos desesperados à força de mordaças, um silêncio sinistro tomou conta do redor e uma escuridão profunda escondeu os movimentos do bando de canalhas. Talvez ninguém se não eles tenha ouvido os estampidos do fuzilamento. Até hoje desconhece-se o paradeiro do cadáver de Heredia. Jaz, muito provavelmente, numa fossa comum que veio a ser descoberta numa aldeia próxima, La Cenia, para onde foram atirados mais de 150 corpos dos que tinham o carimbo de esquerdistas revolucionários. O registo oficial do Comissário de Polícia de Léon declarou o óbito de forma essencialmente prática: «Accidente de guerra a consecuencia de la lucha de las fuerzas Nacionales contra el marxismo».

A seleção nacional de Espanha realizou o seu primeiro jogo no dia 28 de agosto de 1920. Tinha sido reunida propositadamente para participar no torneio de futebol dos_Jogos Olímpicos de 1920, em Antuérpia. Foi uma prova confusa, marcada por desistências, mas os espanhóis regressaram a casa orgulhosamente medalhados a prata. Nos dois anos que se seguiram, bateu-se sobretudo em amigáveis contra a França, Itália e Bélgica, com duas vitórias sobre o estreante Portugal pelo meio: 3-1 em Madrid e 2-1 em Lisboa. No dia 28 de janeiro de 1928, em San Sebastian, realizou uma exibição impecável e reduziu os franceses a uma completa menoridade: 3-0, golos de Monjardín (2) e_Zabala. Nessa altura, Heredia Guerra ocupava o cargo de secretário da Real Federación Española de Fútbol. Desde miúdo, em Madrid, onde nascera, fora fascinado pelo jogo dos ingleses. Jogou aqui e ali, o mais amadoristicamente possível, como era prática na época, e vestiu a camisola do Real. Na federação cabia-lhe o complicado serviço de andar de região em região à procura de representantes para a equipa nacional, gerando conflitos com todos os clubes, pouco dispostos a ceder os seus jogadores. Nesse encontro de San Sebastian repartiu com o presidente da federação, David de Ormaechea, e com o tesoureiro, Luis Argüello, o banco espanhol. Um comité de selecionadores, se quiserem. Que não tinha futuro algum, tantas as divergências surgidas pelo caminho.

No dia 4 de fevereiro, a Espanha voltou a entrar em campo com a sua tripla de treinadores cada vez mais desavinda. Venceu a Bélgica em Antuérpia, por 1-0, mas Heredia deixou o seu posto com a dignidade que todos lhe reconheceram. A Federação Espanhola, dominada pelos sicários do Caudilho, não tinha, por seu lado, qualquer tipo de dignidade. O nome de Joaquín Calixto Heredia Guerra foi pura e simplesmente apagado dos registos até hoje. Não havia quem quisesse reconhecer que o homem que chegou a ser presidente da Cruz Vermelha de León e criou um dos primeiros bancos de sangue do país fora, durante uma semana, selecionador daquela equipa que ganhou, em nome da sua valentia, o apodo de Fúria. A Fúria estava entregue a cobardes e nas mãos dos comprometidos com o regime. Heredia desapareceu mesmo antes de ser arrastado para fora da sua cela em direção à morte por uma cáfila comandada por Luis Medina Montoro. A memória devia ensinar-nos a não esquecer os nomes dos bravos, mas também a não esconder os nomes dos seus carrascos. Por isso, em Mansilla de Las Mulas bate sob um pedaço de terra o coração intrépido de Joaquín Heredia.

afonso.melo@newsplex.pt