Portugal-Espanha. O fantasma da porta ao lado

Há precisamente 99 anos, no dia 18 de dezembro, nascia a seleção nacional de futebol. A excursão a Madrid redundou numa vitória moral, a despeito da derrota por 1-3. Nos quatro anos seguintes, mais três jogos, sempre frente aos espanhóis, todos eles orgulhosamente perdidos – ‘vitórias morais’

Pelas 17h30 do dia 18 de dezembro de 1921, o placar do jornal O Século exposto no Rossio exibia a seguinte notícia: «MADRID, 18 – O encontro de foot-ball realizado hoje em Madrid, foi de 3 goals a 1 a favor dos hespanhoes». Na edição em papel, posta a circular mais tarde, acrescentavam-se pormenores, reproduzidos com a grafia de então: «O resultado para a équipe portugueza, apesar de sofrer uma derrota, não desvalorisa o foot-ball nacional. Assim é, de facto, pois ainda há bem pouco tempo os jogadores belgas, vencedores dos últimos Jogos Olímpicos, considerados, portanto, campeões do mundo, sofreram a derrota dos hespanhoes de 2 goals a 0. Não será o resultado do encontro Portugal-Hespanha honroso para nós? Certamente que sim e teremos de atender à má confecção do team, às dificuldades que a Associação de Futebol de Lisboa teve para o organisar e a falta de interesse manifestada por várias entidades, a começar pelo Estado, que dificilmente concedeu licença a alguns jogadores, funcionarios publicos».

A seleção nacional acabara de nascer, ainda antes da federação. Torta, que é a forma como muitas coisas nascem em Portugal, mas preparada para durar. Formavam o Comité de Seleção, responsável pela seleção dos jogadores e pela orientação da equipa: Carlos Vilar, Pedro Del Negro, Reis Gonçalves, Vergílio Paula, Plácido Duro, José Pereira Júnior, Joaquim Narciso Freire, Guilherme Augusto Sousa, Raul Nunes, Júlio Araújo e também Ribeiro dos Reis, que era ainda jogador. Contrariados pela grande ascendência de lisboetas na formação da seleção, os técnicos e jogadores do Porto resolveram levantar um boicote à deslocação a Madrid. Apenas Artur Augusto desobedeceu às diretivas e se destacou como o único representante de Portugal que não era da capital.

Para a história, per omnia saecula saeculorum, fica o registo oficial desse momento indelével da estreia do grupo nacional que equipava de negro, por influência dos muitos casapianos que a compunham, e tinha ao peito os cinco escudos azuis da Batalha de Ourique, representando os cinco reis mouros dizimados por D. Afonso Henriques: Estádio Martínez Campos, do Atlético de Madrid, em Madrid; Árbitro: M.Cazette (Bélgica); ESPANHA: Zamora; Pololo, Arrate ‘cap.’ e Balbino; Meana e Fajardo; Pagaza, Arbide, Sesumanga, Alcantara e Olaso; PORTUGAL: Carlos Guimarães (Internacional); António Pinho (Casa Pia), Jorge Vieira (Sporting) e João Francisco (Sporting); Vítor Gonçalves (Benfica) e Cândido de Oliveira (Casa Pia, ‘cap’.); J. Maria Gralha (Casa Pia), António Augusto Lopes (Casa Pia), Ribeiro dos Reis (Benfica), Artur Augusto(F. C.Porto) e Alberto Augusto (Benfica). Golos de Alcantara (2), Meana e Alberto Augusto.

O 1-0 surgiu aos 6 minutos, na sequência de um livre marcado por Pagaza entre a linha lateral e a linha de grande área. Meana elevou-se bem e cabeceou com êxito. Aos 10 minutos, 2-0: Alcantara desmarca-se, isola-se frente a Carlos Guimarães e faz o golo com calma. Aos 66 minutos, de novo Alcantara – um avançado que chutava com tanta força que colocava um lenço traçado sobre o peito do pé para não se magoar -, num remate espetacular e sem preparação, faz o 3-0. Finalmente, o golo de Portugal surgiu de um penálti a castigar uma mão de Pagaza, impedindo que uma bola vinda de António Lopes chegasse a Ribeiro dos Reis. Alberto Augusto, o Batatinha, apontou o castigo e tornou-se o primeiro jogador a marcar um golo com a camisola da seleção nacional.

Noventa e nove anos decorreram entretanto, com a facilidade com que a água costuma passar por debaixo das pontes na sua incontrolável ansiedade de mar.

 

Somando derrotas morais

Nos quatro anos que se seguiram, Portugal e Espanha voltaram a encontrar-se por mais três vezes. Seria preciso esperar precisamente um ano para que, no dia 17 de dezembro de 1922, a seleção espanhola se deslocasse a Lisboa, retribuindo a viagem portuguesa a Madrid.

Entre dezembro de 1921 e dezembro de 1922, o futebol conquistara espaço entre nós e importância na opinião pública, algo que se refletiu na forma como os meios de comunicação social cobriram a visita da equipa espanhola e na maneira como os portugueses viveram o acontecimento. A chegada dos espanhóis a Lisboa mereceria noticiário volumoso. Uma multidão de largos milhares de pessoas deslocou-se à Estação do Rossio para aplaudir entusiasticamente os jogadores e treinadores adversários. Há figuras que têm direito a uma receção especial: os técnicos Julian Remeta, Ricardo Calat e Eugenio Angoro, o árbitro francês Balvay e, acima de todos, o lendário Zamora, que desembarca no Rossio acompanhado pela sua mascote inseparável, uma boneca de trapos.

Zamora provocava alvoroço onde quer que fosse: era, aliás, o inspirador das famosas «zamoranas», uma defesa na qual o braço e o antebraço formavam um ângulo reto, rapidamente imitada por todos os guarda-redes portugueses e, principalmente, pela miudagem nos seus jogos de rua. Os enviados especiais dos jornais espanhóis El Sol (Ricardo Ferry) e La Acción (Placido Buylla) desdobram-se em entrevistas, opinando sobre o valor das duas equipas.

Na véspera do jogo, o Padrão dos Descobrimentos foi inaugurado em Belém e o país deixou-se encantar definitiva e irremediavelmente pela sua seleção. Pela uma hora da tarde do dia 17 de dezembro, o velho campo do Stadium, na Alameda das Linhas de Torres, rebenta pelas costuras. Mais de 20 mil espetadores comprimem-se nos peões e nas bancadas; centenas de automóveis e sidecars invadem a beira das estradas do Campo Grande. Um verdadeiro «acontecimento sportivo e mundano», como era de bom tom dizer-se por esses dias.

Alguns minutos antes das duas, os espanhóis entraram em campo envergando os seus orgulhosos equipamentos vermelhos e azuis. Zamora, o grande keeper do Espanhol de Barcelona e, mais tarde, do Real Madrid, o «dominador emérito da bola», provocava excitação no público com a sua boneca de trapos e concitava a afeição geral. Os representantes das duas organizações, Ornaechea e Raul Nunes, trocaram ramos de flores no centro do terreno; o Presidente da República, António José de Almeida, tomou o seu lugar de honra ladeado pelo presidente do Ministério, pelo ministro dos Negócios Estrangeiros e pelo ministro de Espanha, como era designado o embaixador, Alejandro Padilla.

O jogo começa então, lento e pouco merecedor de tão grande entusiasmo. Carreaga e Montesinos dominam o setor defensivo da Espanha e o seu ‘capitão’, Samitier, que jogaria no Barcelona e no Real Madrid, o homem que chegava com a cabeça onde os guarda-redes não chegavam com as mãos, desenvolvia um jogo admirável, controlando os movimentos ofensivos dos portugueses, entre os quais Alberto Rio e Torres Pereira são, até ver, os mais dinâmicos. Os pontapés fortíssimos do zurdo Acedo assustam o público, mas Carlos Guimarães está atentíssimo e tranquilo. Um oooh! de espanto sublinha o remate estupendo de Jaime Gonçalves às traves de Espanha. E o delírio rebenta a cinco minutos do intervalo: Alberto Rio ganha a bola a um adversário e corre solto pelo meio do campo até a entregar a Jaime Gonçalves. Mais uma vez, este ensaia o seu fortíssimo remate. Só que, agora, certeiro e infalível. Zamora está batido. A multidão parece querer mergulhar sobre o relvado, vêm-se lenços acenando nas bancadas.

Precisamente às 15 horas e 20 minutos, assinalam os registos, deu-se início ao segundo tempo. E os espanhóis surgem agora mais rápidos e mais agressivos. Há talvez um excesso de dureza ao qual os portugueses não estão habituados e que os obriga a recuar na defesa da sua baliza. Na sequência de um canto, o salto coletivo de quatro espanhóis na área de Portugal baralha por completo os backs lusitanos e Monjardín empata a contenda. A qualidade da seleção espanhola vem ao de cima, o seu domínio acentua-se e é quase com naturalidade que Piera faz o 2-1. A vitória fica-lhes bem. E os portugueses reconhecem-no. O Diário de Notícias fala, no dia seguinte, de «uma vitória moral estrondosa». O termo ganhará raízes.

 

Sempre Espanha

Sem outro adversário que servisse para testar as suas qualidades, a seleção portuguesa tinha nestes encontros anuais frente à Espanha o seu grande momento. Em 1923, o jogo foi aprazado para Sevilha, no dia 16 de dezembro.

Como de costume, em Portugal, o entusiasmo foi transbordante. Reconhece-se, claro!, o favoritismo aos espanhóis, mas salientam-se os progressos feitos e a qualidade dos jogadores lusos, do guarda-redes Francisco Vieira, do Benfica, ao avançado-centro Balbino, do FC Porto, passando pelo interior direito Alberto Augusto, do Benfica – o homem que ficaria para a história do futebol português por ter sido o primeiro marcador de um golo pela seleção e que, depois de Sevilha, não voltaria a ser ‘internacional’ – , e pelo ponta-esquerda Alberto Rio, do Belenenses.

Mas a derrota foi nítida e dececionante: 0-3. Zabala, jogador do Real Unión, que tivera a sua primeira internacionalização frente à França, em janeiro desse ano, foi o grande carrasco de Portugal com um hat-trick demolidor. Foi o primeiro a fazê-lo, mas nunca mais voltaria a envergar a camisola vermelha da Fúria.

O jogo português foi fraco, e o dos espanhóis brilhante. Em Lisboa, as pessoas juntavam-se em redor dos placares montados pelos jornais diários que tinham enviados especiais em Sevilha para seguirem a par e passo as peripécias da partida, enviadas desde Espanha por telegrama. No Rossio, sobretudo. Mas o futebol atingira um estatuto que já dava direito a que os mesmos telegramas fossem lidos nos ecrãs do Cinema Condes, do Chiado Terrasse, do Salão Foz ou do Cine Casino, na Amadora.

As exibições do grande Zamora, do gigante Samitier, do terrível Paulino Alcantara, interior- esquerdo do Barcelona nascido em Illo-Illo, nas Filipinas, tido como o «avançado mais perigoso de toda a Espanha», e de Del Campo, avançado-centro do Real Madrid, foram comentadas pelos cafés de Lisboa e do Porto como se o jogo tivesse sido visto in loco. O árbitro belga, Rutz, é acusado de parcialismo mas, nos dias que se seguiram à derrota, a viagem atribulada entre Lisboa e Sevilha foi escalpelizada e percebeu-se a dimensão da desorganização existente na seleção.

O desequilíbrio de opiniões entre os componentes do Comité de Seleção era manifesto e contribuiu decisivamente para o caos da equipa sobre o relvado. A ausência do ‘capitão’ Vítor Gonçalves (viria a ser pai de Vasco Gonçalves, que chegou a primeiro-ministro), que viajou mas não jogou, serviu igualmente para aumentar a desconfiança entre os jogadores. Na manhã do jogo, ainda ninguém sabia ao certo qual o onze que entraria em campo. O desentendimento entre Ribeiro dos Reis e Vergílio Paula, por um lado, e Pedro Del Negro, o representante da União Portuguesa de Futebol (UPF), por outro, era manifesto. Na base da polémica, o lugar de avançado-centro e mais uma batalha norte/sul. Os técnicos apostavam no jovem setubalense João dos Santos, o dirigente no portista José Balbino. Balbino teria a sua oportunidade. Jogou em Sevilha o seu único encontro com a camisola das quinas. As divergências tornaram-se insanáveis. E as feridas, profundas.

Ribeiro dos Reis foi o homem chamado para assumir o cargo de selecionador. Desportista conceituado, profundo conhecedor das regras do jogo, homem de formação militar que lhe dava igualmente uma enorme base de estudo no desenvolvimento da educação física, esperava-se dele que fosse capaz de apaziguar os desentendimentos latentes entre o Norte e o Sul na fase sempre complicada das opções. Como primeiro grande desafio, coube-lhe preparar a receção à Espanha, que continuava a ser o nosso adversário de estimação. A receção montada aos espanhóis voltou a ser apoteótica. Chegados à Estação do Rossio num sleeping-car atrelado ao Rápido de Madrid, os jogadores do país vizinho desfaziam-se em simpatias. Samitier, El Mago de la Pelota, elogiava a qualidade dos portugueses. Em maio de 1925, Portugal vivia então o sonho do primeiro triunfo. A esperança estava mais acesa do que nunca. Porquê? Porque se pacificara o futebol português, porque Ribeiro dos Reis tinha um enorme apoio popular e, principalmente, porque a imprensa fazia questão de se abster de criticar o seu trabalho antes de ver a seleção jogar. Apesar de toda esta onda de otimismo, que provocou a maior assistência que até aí se vira, Portugal voltou a perder. O resultado foi seco e não deixou grandes margens para dúvidas: 0-2, com golos de Piera e Carmelo. Mas as discussões e as críticas ao comportamento da Espanha eclodiram com violência. Ainda impreparados para a componente competitiva do jogo, os portugueses queixavam-se da falta de desportivismo dos adversários, da lentidão com que repunham a bola em jogo depois de estarem em vantagem, da forma como permitiam que ela saísse pelas quatro linhas em lances em que podiam evitá-lo, da agressividade que colocavam nos movimentos defensivos. O público, apaixonado, não ovacionara desta vez a Espanha. Pelo contrário, desdobrara-se em vaias e assobios. O Século escrevia, pela pena de um jornalista indignado: «Os espanhóis não se conduziram com o aplomb irrepreensível que esperávamos. Chegaram a provocar throw-ins quando era perfeitamente possível não o fazer. Não podemos tecer louvores à sua correcção». O futebol mudara e Portugal ainda não dera por isso…