E se ninguém nascesse mulher?

Vaga após vaga, o feminismo tem andado de mãos dadas com a luta pela igualdade de género. Que desafios enfrentam estas conceções em pleno séc. XXI? Foi esta a pergunta de partida dos seminários “Género, Comunicação e Média, que desafios?”.

A guerra contra a subalternização das mulheres e a dominação masculina no mundo constitui o princípio basilar do feminismo que, na ótica de Filipa Subtil, «permitiu alterar, questionar a naturalização da desigualdade entre homens e mulheres, colocando-a como produto de uma história de dominação». Foi desta forma que a docente de unidades curriculares de Sociologia da Comunicação na Escola Superior de Comunicação Social, em Lisboa, deu início à comunicação ‘Enquadramento histórico, sociológico e político-legal do género’, integrada nos seminários formativos ‘Género, Comunicação e Média, que desafios?’, que decorreram, via Zoom, no passado dia 9 de dezembro.

Antes de abordar o conjunto de movimentos políticos e sociais, bem como ideologias e filosofias, que têm como objetivo primordial a obtenção de direitos e vivência humana iguais, com foco no empoderamento feminino e na libertação dos poderes do patriarcado – assentes nas normas de género –, a doutora em Ciências Sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa elucidou que, «se admitirmos que há uma construção social e cultural do género, então podemos admitir uma orientação social e cultural, isto é, uma socialização e uma aculturação que estejam pautadas pela igualdade, pela equidade entre homens e mulheres, mas, mais ainda, entre todos os seres humanos de todos os géneros».

O que é o género?

Quando foi enunciado pela primeira vez, em 1955, pelo sexólogo norte-americano John Money, o género tratava-se de um conjunto de características pertencentes e diferenciadas entre a masculinidade e a feminilidade. Isto é, características que podiam dizer respeito ao sexo biológico como sendo masculino ou feminino, tendo sido igualmente introduzida a variação intersexo. No entanto, com a evolução das sociedades percebeu-se que nem todas as identidades podem ser abarcadas pela palavra ‘género’, ou seja, nem sempre estão ao dispor das pessoas vocábulos que permitamdescrever a multiplicidade de géneros, a ausência de medos dos mesmos, a parcialidade e muitos mais cenários. Deste modo, tem vindo a ser validada, por variadas organizações nacionais e internacionais, uma lista de géneros “aberta” a novas entradas. A título de exemplo, a ILGA Portugal, num documento sobre identidade de género intitulado ‘Eu?_Sou uma pessoa’, argumentou que esta última «é uma componente fundamental da identidade de cada um(a) de nós», devendo, «naturalmente, ser respeitada».

A teoria de Money só foi totalmente aceite na década de 70 do séc. XX, quando foi abraçada a distinção entre o sexo biológico e a construção social de género. Esta última poderá prender-se também com a opressão baseada no sexo, quando são atribuídos determinados papéis sexuais e sociais a um indivíduo, e algumas culturas definem papéis de género específicos que podem ser associados a homens e a mulheres. Na verdade, foi esta uma das premissas que levaram Subtil, coeditora e autora de Media and the Portuguese Empire (Palgrave Macmillan, 2017) e A Crise do Jornalismo em Portugal (Deriva/Le Monde, 2017), a referir o facto de que, durante muitos séculos, as ordens sociais foram estabelecidas através de relações de dominação. E esta «atitude de aceitação, de não questionamento» foi denominada por Pierre Bourdieu como «paradoxo da doxa». Segundo Subtil, tal fundamenta-se nos pressupostos de que o mundo é como é, que nele existem «injustiças enormes que permanecem através dos processos de dominação e tal é admitido sem dificuldade, como se as pessoas não tivessem capacidade de descobrir que esse mundo, que é o que é, não é razoável, é violento e que pode ser mudado» se lutarem contra ele. Para que esta luta seja levada a cabo, devemos recusar, de forma argumentada, o mundo como ele é – um mundo da desigualdade entre homens e mulheres – e romper com aquilo que tem sido imposto, acabando com a invisibilidade das vítimas. Além disso, a investigadora, que integra, desde 2020, o grupo de especialistas da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, clarificou que «não podemos ser mais cúmplices, homens e mulheres, de uma ordem baseada na instituição da dominação masculina do mundo ou de qualquer outra dominação de género que possa existir ou venha a existir». Neste sentido, quando nos insurgimos, integramos o feminismo, que se trata de um movimento plural que tem tomado múltiplas formas, «sendo (…) aquilo que o une (…) uma mobilização para desmantelar/derrubar as posições de subjugação das mulheres nas esferas pública e privada», com o intuito de que tais atitudes tenham «impacto nas estruturas, políticas, sociais, económicas e culturais das sociedades modernas».

As vagas do feminismo

Para Maggie Humm (professora de Estudos Culturais na University of East London) e Rebecca Walker (escritora norte-americana considerada uma das grandes vozes da terceira vaga do feminismo), a história do feminismo pode ser dividida em três ‘ondas’, a que Subtil acrescenta uma quarta vaga, ainda em curso.

Entre os finais de 1700 e as primeiras décadas de 1900, correspondentes à primeira vaga do feminismo, as principais reivindicações passaram pela promoção da igualdade nos direitos contratuais e de propriedade entre homens e mulheres. Além disso, era também vincada a oposição aos casamentos fiduciários, comuns sobretudo no seio das classes mais abastadas. Contudo, no final do séc. XIX, as reivindicações estenderam-se à conquista de direitos políticos, em particular o direito de voto. Em Portugal, a médica, republicana e sufragista Carolina Beatriz Ângelo foi a primeira mulher a votar – acontecimento histórico que ocorreu no sufrágio para a Assembleia Nacional Constituinte, no dia 28 de maio de 1911, pois o código eleitoral determinava o direito de voto a «todos os portugueses maiores de vinte e um anos, à data de 1 de maio do ano corrente [1911], residentes em território nacional, compreendidos em qualquer das seguintes categorias: 1.º Os que souberem ler e escrever; 2.º Os que forem chefes de família (…)». Como explicou Subtil – cujos interesses de investigação se centram em temáticas como a teoria social dos média nos EUA_e Canadá -, a médica «reunia todas as condições para votar, tendo em conta que a lei não especificava que apenas os cidadãos do sexo masculino tinham capacidade eleitoral».

Consequentemente, nos anos 60 e 80 do séc. XX nasceu a segunda vaga do feminismo, fortemente marcada pela frase «ninguém nasce mulher, torna-se mulher», da escritora francesa Simone de Beauvoir. Para Subtil, esta ideia presente no livro O Segundo Sexo, de 1949, constituiu o «mote para a descoberta do género como categoria sociológica», tendo-se assumido «definitivamente que a feminilidade não é uma condição biológica, mas antes uma construção social».

Volvidos 20 anos, em 1969, com a publicação de O Pessoal é Político, Carol Hanisch, feminista radical e membro dos grupos New York Radical Women (1967-1969) e Redstockings (1969 até ao presente), transmitiu que «a maioria dos problemas que a mulher enfrentava na vida privada não eram culpa sua, mas da opressão sistemática a que estava sujeita», encorajando as mulheres a olharem para a vida privada e criticando a desigualdade existente entre homens e mulheres «nomeadamente em esferas como a família, a educação, a sexualidade e o trabalho».

Entre os anos 90 do séc. XX e os primeiros anos do séc. XXI assistiu-se à expansão dos temas feministas de modo a providenciar a inclusão «de um grupo diversificado de mulheres com identidades igualmente variadas» e, como declarou Subtil – que publicou, em 2006, Compreender os Média. As Extensões de McLuhan (Minerva Coimbra) –, nesta terceira vaga «existiu um foco na teoria queer, propondo-se ir além das teorias binárias homens versus mulheres e aprofundando-se os estudos sobre as minorias sexuais».

Seguindo esta linha de pensamento, a partir da segunda década do séc. XXI, a quarta vaga do feminismo tem vindo a assentar na crença e na confiança nas potencialidades do uso da rede para ampliar a visibilidade da luta – esta vaga é definida pela tecnologia e caracterizada pelo uso das redes sociais para contestar a misoginia, termo que deriva das palavras gregas miseó, ódio, e gyné, mulher, dizendo respeito ao ódio, desprezo ou preconceito nutrido por mulheres e outros exemplos de desigualdade de género, sendo denunciados crimes como o da violência sexual ocorrida nas universidades ou o assédio laboral –, no «empoderamento das mulheres» e na «interseccionalidade no desenvolvimento das políticas públicas, em especial as relativas à igualdade», embora a investigadora tenha questionado os formandos acerca da possibilidade de as políticas públicas reconhecerem que as desigualdades estão interligadas e, se assim for, temos o dever de entender até que ponto a nova perspetiva de género está a ser institucionalizada. Portanto, se refletirmos acerca do caso europeu, «podemos dizer que o crescente interesse neste tema deve-se à atual aposta da União Europeia na luta contra as desigualdades múltiplas». Neste ponto, Subtil recorreu ao European Institute for Gender Equality com o intuito de demonstrar que esta agência europeia, que se dedica unicamente à promoção da igualdade de género, «trabalha para que a igualdade de tratamento entre homens e mulheres seja uma realidade dentro e fora da UE, de modo que todos/as possam ter as mesmas oportunidades de vida, independentemente do género», abrindo caminho «a uma maior compreensão e consciencialização acerca da igualdade de género em todas as esferas da sociedade».l