Escurinho, com licença das mulheres

Escurinho morreu há quase 20 anos e somava 61. Nunca largava o violão. Escrevia sambas e marcava golos aos pontapés

O mundo mudou de tal modo que não sei se hoje em dia dão o direito a um jogador de se chamar a ele próprio de Escurinho. Luiz Carlos Machado era Escurinho e gostava de ser chamado de Escurinho. Provavelmente, agora estaria proibido de escolher essa alcunha para si mesmo. No meio desta confusão babilónica de cores que cada homem pode ter, o racismo tem todas as possibilidade de grassar pelos caminhos da total intimidade. Ou seja, sermos racistas connosco próprios. Aí, Machado diria: «Eu, Escurinho…». E antes de acabar a frase teria sido suspenso do futebol por dez anos, obrigado a trabalhos forçados e atirado para o fundo da caldeira de Pêro Botelho.

Escurinho morreu há quase 20 anos e somava 61. Nunca largava o violão. Escrevia sambas e marcava golos aos pontapés, sobretudo aos pontapés de cabeça. Isso mesmo: poucos como Escurinho chutavam de cabeça com tamanha força e colocação. Nos anos 70, no Internacional de Porto Alegre, os treinadores não o consideravam assim tão bom que merecesse entrar direto na equipa titular. Luiz, o Escurinho (pronto, vá lá, censurem-me, levem-me preso) tinha a paciência infinita dos sambistas. Ficava no banco imaginando notas e palavras e a forma de as encaixar umas nas outras. E sonhava com mulheres. Luiz Carlos Machado era fichado no mulherame: «Mariazinha foi minha primeira vez/Já Gorete foi quem mais me usou/Geruza me ensinou a remexer/Carminha foi quem mais me deu prazer…». Estava neste enleio quando ouvia o grito do treinador, o jogo já à beira do fim: «Escurinho, está esperando o quê? Deixa de moleza e vai lá para dentro».

Lá para dentro era o relvado, claro. Luiz ia para o meio da área adversária e ficava à espera que a bola viesse de uma das pontas. Depois erguia-se como se voasse, batia com forças as asas dos braços, parava um pouco lá no alto onde tinha encontro marcado com a bola e batia nela com violência, com a esquina da testa. Inevitavelmente era golo. De 1970 a 1977 esteve no Internacional de Porto Alegre e repetia o gesto jogo após jogo. Escurinho era um aéreo em todos os sentidos do termo. Era aéreo no jogo e na vida. Isto é, no campo ou fora dele, andava com a cabeça no ar.

Luiz Carlos Machado era uma espécie de Mercúrio negro de asas nos pés. Sabia todos os truques dos bichos voadores, desde o urubu ao beija-flor. Sabia até ficar parado junto à baliza do inimigo, em silêncio, de cabeça para baixo como um morcego, sem que ninguém desse por ele até vir a bola, ora da esquerda ora da direita. Depois sacudia as asas e fazia golo. Foi campeão: gaúcho e nacional. Enquanto esperava a ordem do treinador para entrar, assobiava uma modinha. Ou ia compondo os seus sambas que foram publicados em 1974 num álbum com a ajuda de malta da Música Popular Brasileira como Wilson Ney, Bedeu e Lupicínio Rodrigues. Samba de mulher, claro: «Anita era sincera só queria por dinheiro/Rosali só deixava com as mãos/Com Benedita foi aquele desmantelo/Carolina nem me deu seu coração».

No Estádio da Beira Rio, Escurinho tinha em seu redor um nunca mais acabar de jogadores de encher o olho: Falcão, Carpegiani, Manga, Figueiroa, Batista,_Jair, Dino_Sannis, Rubens Minelli. Tanto brilho cegava até um amblíope. Tranquilão, sorridente, Luiz limitava-se a ser Luiz. Já sabia que quando alguma coisa corria mal, o povão começava a gritar nervoso, batendo com os pés na bancada de cimento: «Escurinho! Escurinho! Escurinho!». Então levantava-se, ia lá para o seu lugar junto da baliza contrária e esperava pacientemente pela bola que dava em golo. Festejava alegre e a multidão festejava com ele. Havia um entendimento entre todos que era impossível de explicar.

O excesso de açúcar matou Escurinho. Tinha doce de mais nos seus sambinhas: «Eu quero amor/Eu quero amar/A melhor coisa do mundo/Só o amor que pode dar…». É possível que amor em excesso traga consigo a diabetes. Amputaram-lhe metade das pernas, mas não deixou de tocar violão, cavaquinho e pandeiro. Ficou sentdo à espera da morte, que o apanhou em 27 de setembro de 1911, mas dedilhava as cordas e atirava para o céu uma voz suave carregada de paixões: «Edileuza gemia tão gostoso/Marineide era a mulher do meu vizinho/Netinha era a mulher de um amigo meu/Toinha só me dava se eu me casasse com ela/Rosinha era novela/Anita era sincera/Às vezes eu e Telminha nem fechava a janela/De madrugada negrinha gemia tanto/Bernadete nunca me deu um sorriso/Margarete nunca quis nada comigo/Soninha era minha e também dos meus amigos…».

Às vezes ficava olhando o infinito com lágrimas nos olhos. Escurinho, que conhecia o voo dos pássaros, era um lamecha sacana: não respeita mulher nem de amigo nem de vizinho. O mundo para ele era em forma de mulher.

afonso.melo@newsplex.pt