Félix da Costa. “Acredito que podemos lutar novamente pela vitória”

Começou a viajar desde muito cedo e já correu mundo mas é categórico: ‘Não há nada como Portugal e como Cascais’. Diz que se move a adrenalina e garante que os carros elétricos são o futuro. Aos 29 anos, o campeão mundial de Fórmula E prepara-se para acelerar a fundo para a próxima época, que…

Félix da Costa. “Acredito que podemos lutar novamente pela vitória”

 

Já falaste nisto algumas vezes, mas parece-me pertinente começar por aqui: Ainda tens que dizer muitas vezes como se pronuncia o teu nome: António Féliz da Costa e não Félix da Costa, como se escreve? Tens tendência a corrigir quando dizem mal ou deixas passar?

[risos] Deixo passar, deixo passar…

Achas que o João Félix veio complicar ainda mais esta situação? Ele acha que é Félix, mas não está correto [risos].

Já tiveste oportunidade de lhe dizer?

Não, não… [risos].

Aproveitando o dia em que vai ser publicada esta entrevista, como vais celebrar o Natal? Vai ser um Natal diferente?

Infelizmente, vai ser muito mais restrito e muito mais calmo do que costuma ser. Tenho uma família grande, muitos primos e tios – é uma família grande, o que é ótimo, sobretudo para mim, que passo tanto tempo fora durante o ano… o Natal era sempre aquela altura boa para voltar a ver a família toda. Este ano não vai ser o caso, por várias razões, obviamente que a pandemia é a principal, sobretudo por causa da minha avó e das pessoas de risco. Além disso, vou começar a época já no início de janeiro e por isso também estou a entrar na fase de quarentena obrigatória, de forma a garantir que não há casos positivos. Só assim também consigo garantir que posso ter um início de temporada limpo.

Ainda dentro da época natalícia, eras aquele miúdo fora do comum, ou seja, normalmente as crianças pedem carros telecomandados ou consolas; tu pedias o quê? Capacetes, luvas, pneus para os karts?

[risos] Sempre foi um bocadinho mais nessa direção, sem dúvida. Sempre precisei de gasolina e motores quando era mais novo. Na altura, era um bocado nessa base, sim. Se calhar, eles pediam um jogo para a playstation e eu ia mais para o capacete, luvas… Sempre adorei andar de mota, também pedia armaduras para andar de mota…

Como viveste a tua infância, para lá do interesse que já mostravas pelo automobilismo?

Eu sou um sortudo. Claro que ter optado por este estilo de vida me tirou muita disponibilidade – falhei muitas datas importantes, como anos de irmãos, pais… -, porque desde novo que viajo para campeonatos da Europa, do Mundo… Desde os 12 anos que corro fora de Portugal e isso tirou-me muito de casa; mas, ao mesmo tempo, sou um sortudo, porque desde essa idade que faço o que mais gosto da vida. Eu ia para a escola a pensar nas corridas! Muita gente me pergunta quando é que eu me apercebi que era isto que eu queria fazer na vida, mas esta foi sempre a opção número 1, sabes? Considero-me um sortudo por tudo o que tenho, tudo o que consegui e ter chegado até aqui.

Sentes que a tua família já não foi apanhada de surpresa, uma vez que também tinhas um irmão [Duarte Félix da Costa] neste meio? Pelo menos tornou mais fácil digerir estas saídas precoces?

Sim, sem dúvida. E também tive a sorte – sorte minha, azar de outros – de ver… Vi muitos pilotos que tinham muito talento e quando chegaram aos 15,16, 17 anos, quando entra a fase da vida de adolescente, mais saídas à noite, enfim… Vi vários pilotos a estragarem-se por não terem dedicado todo o seu tempo à carreira de piloto… Vi vários estragarem-se assim. Acho que também consegui usar os erros dos outros para fazer o meu caminho ainda melhor. Mas obviamente que tem de haver tempo para tudo, não digo que não se possa ir a festas, mas obviamente temos que ter uma vida muito mais disciplinada, mais controlada. Com o acompanhamento que levei em casa e com a minha dedicação à carreira consegui fazer sempre as escolhas certas.

Olhando para trás, e vendo aquele miúdo de 12 anos, que já viajava pelo mundo, hoje pensas como foi possível? Como já fazias essa vida com aquela idade?

Ahh, não, por acaso não! Acho que viajar é uma coisa muito, muito simples – e tem ficado cada vez mais! Se calhar apanhei essa transição, da facilidade de viajar. Lembro-me, por exemplo, do 11 de Setembro. Eu vi essa mudança toda que aconteceu nos aeroportos, na altura já viajava sozinho. Mas acho que é muito fácil viajar sozinho. Obviamente que temos que ter alguns cuidados nessas idades, mas acho que até isso me obrigou a crescer muito rápido. Eu não me lembro de pedir autorização aos meus pais para sair de casa, ou para fazer isto ou aquilo, para aí desde os 11 anos… [O modo de vida] Obrigou-me a ter uma adolescência mais acelerada, um crescimento mais acelerado…

Falaste no 11 de Setembro. Essa e outras situações que podes ter apanhado também te obrigaram a tomar consciência da realidade do mundo demasiado cedo? Pergunto-te isto porque há várias mães e pais que optam por proteger os filhos de ver determinadas notícias… E tu acabavas por ser confrontado com essas situações… Na altura, conseguias ter a perceção da dimensão desses acontecimentos?

Vou ser sincero… Quando aconteceu [11 de Setembro], eu não fazia ideia do que eram as Torres Gémeas, foi uma coisa que aprendi no dia… Mas em casa nunca fui privado de ver o que estava a acontecer. Sempre fizeram muita questão de nos deixar a par da realidade do mundo – as coisas boas e as coisas más. E mesmo eu, com as viagens desde tão cedo para as corridas, tive a possibilidade de ver outras realidades: eu próprio vivi em garagens com os meus mecânicos; acordava de manhã, abria a porta, e encontrava motores no chão… Isso também me ajuda a por tudo em perspetiva, a dar valor ao que tenho e não tomar nada por garantido. Trabalhar sempre muito duro para conseguir aquilo que queremos.

Tudo isso te fazia dar ainda mais valor quando regressavas ao conforto de casa? 

Ajudou-me a perceber que sou um sortudo. Nós não escolhemos, mas vivi em Cascais a minha vida inteira… Eu tenho a noção do quão bom é o nosso país, o nosso Portugal; a educação que tive… Mas sempre me adaptei bem: eu tanto consigo dormir num hotel de duas estrelas como num de cinco. Desde que esteja limpo, está tudo ok.

Não há nada que te tire o sono?

Não há nada que me tire o sono! Isso não há mesmo! Eu adormeço em todo o lado! Qualquer tipo de veículo, aéreo ou carro ou seja o que for, também nisso sou um sortudo [risos].

Por falar em veículo aéreo, mais concretamente no avião, não achas que o conceito da sustentabilidade em que a Fórmula E assenta choca um bocadinho com esse lado da poluição provocada pelos aviões, meio que têm que utilizar para se deslocarem para as várias etapas da prova?

Neste momento não podemos controlar tudo, nem mudar tudo. Tem que ser passo a passo se queremos mostrar e passar a mensagem da sustentabilidade que é a Fórmula E – é um palco de desenvolvimento para todas as marcas de carros desenvolverem e mostrarem as suas inovações e tecnologias de mobilidade elétrica; agora, se é preciso continuar a andar de avião para chegar à outra ponta do mundo e mostrar tudo isso, temos que fazê-lo. Ainda não há uma solução e vai ser passo a passo. Agora começa por mudar as pessoas no dia-a-dia, com os carros do dia-a-dia; depois autocarros, barcos… e aviões é obviamente uma realidade mais distante. Um barco, se ficar sem bateria, não tem mal, ou um carro, agora o avião não convém [risos]. Mas acho que vai ser aos poucos. Vimos agora com o confinamento obrigatório, quando começou a pandemia, naqueles dois, três meses iniciais, o mundo em tão pouco tempo tornou-se muito mais limpo e isso mostra que a mudança também é rápida. Temos que querer… Nós vivemos num mundo onde cada vez mais queremos mostrar onde estamos, o que fazemos… Com isto das redes sociais é ‘já tenho isto; já tenho aquilo’, ‘olhem o meu carro’… Mas acho que com os carros vamos ter que mudar rapidamente as cabeças das pessoas. Não são precisos Ferraris de 800 cv para se ir do ponto A ao ponto B. O importante é ir do ponto A ao B, e se pudermos fazer isso de uma forma que ajude o nosso planeta, não para a nossa geração mas para as gerações que vêm a seguir… Acho que isso é o mais importante.

Mas não achas que o verdadeiro amante de carros vai sempre precisar de ouvir aquele barulho do carro, sentir o carro? Ou seja, não será sempre uma sensação diferente conduzir um Ferrari, pegando no exemplo que deste, ou um carro elétrico?

Não tenho nenhuma dúvida de que sim. O barulho é obviamente um fator importante, mas até isso vai ser facilmente replicado no futuro, mas sim, se calhar o cheiro a gasolina, aquela sensação de entrar numa garagem e sentir o cheiro a carros clássicos… Isso é importante, mas acho que o passo também vai ser dado de forma automática entre gerações. Acredito que uma pessoa que esteja a nascer hoje, daqui a 18 anos, quando tirar a carta, vai, se calhar, ver um carro a passar e a fazer imenso barulho e vai pensar ‘ei, que chatice, mas o que é isto que está aqui a incomodar?’. Acho que vai ser um processo que vai acontecer aos poucos e de forma natural.

Fora das pistas o que te deixa elétrico? Quero dizer, o que te entusiasma?

Sou uma pessoa muito ativa, preciso de adrenalina no meu dia-a-dia, seja com desporto, como surf, andar de mota… Também adoro jogar golfe, mas ao fim de uma hora já estou quase a comer os tacos – é uma modalidade mais parada. Acima de tudo, a adrenalina é o que me move.

Também gostas muito de esquiar, tocar guitarra e fazer edição de vídeos, verdade?

Por acaso, a edição de vídeos é algo por que eu ganhei interesse nos últimos anos. E nas viagens que faço com os meus amigos – duas por ano, uma ao surf e uma à neve –, costumo filmar, filmar, filmar… Depois, quando tenho um voo de 12 horas, seja para onde for, edito logo o vídeo todo e é das coisas que mais me dá gozo – ter a possibilidade de reviver esses momentos…

Foi um hóbi que descobriste também devido ao teu estilo de vida, que também te obriga a estar muitas horas em aviões?

Exato. Arranjei coisas para me entreter porque tenho muitas horas mortas e que não posso controlar, com voos, aeroportos, tempos de espera, voos que atrasam… Tudo isso são horas que não recuperamos e também por isso fui arranjando coisas para me entreter…

Deves estar farto de aeroportos, não? Estou farto há anos! Mas tem que ser…

Começas muito cedo no Karting e o teu plano é claro: chegar à Fórmula 1. Como foi chegar à porta da F1, representado por uma marca que até é bastante conhecida pelo famoso slogan de ‘dar asas’ e, de repente, cortam-te as tuas? Como recebes a notícia, isto já depois de teres feito o fato e o banco à medida…  Foi um dia complicado. Tinha o contrato assinado, como disseste, tinha o fato feito, o banco feito à medida, tudo muito falado e há um dia em que recebo uma chamada – e eu estava à espera de receber essa chamada, mas com boas notícias -, e foram as notícias completamente opostas, em que o meu chefe me diz que o meu lugar já não estava disponível… Mas, pronto, nessa mesma chamada, arranjou-me um plano B para a minha carreira: assinei contrato de longo prazo com a BMW, com quem fui correr no DTM [principal campeonato de carros de turismo da Alemanha], um campeonato também muito prestigiante. Nem tudo foi mau, acho que as coisas acontecem por uma razão, se não fosse isso, hoje se calhar não estaria na Fórmula E. Acho que a minha carreira tem muito mais asas para voar hoje em dia.

Mas como fizeste a mudança do mind set? Tinhas um sonho e tinhas trabalhado sempre nesse sentido, estavas com um pé e meio nesse objetivo…

Não foi fácil e demorou algum tempo. Vivi uma fase de frustração, onde dizia mal de todos, não estava contente com o que tinha nem onde estava – mas lá está, bastou por as coisas em perspetiva, olhar para outros pilotos que se calhar estiveram na mesma situação que eu e nem um plano B tiveram… Tudo na vida é perspetiva. Tudo na vida é por as coisas umas ao lado das outras e compará-las. Foi um bocadinho por esse caminho. Rapidamente me considerei um sortudo por estar a representar uma marca que é conhecida nos quatro cantos do mundo [BMW]. Aconteceu aterrar na China e, no aeroporto, ver um miudinho chinês com uma t-shirt do DTM da BMW. Isso também foi uma grande prova de que estava num sítio que também tinha muito prestígio, a representar uma marca muito conhecida – e também comecei a dar valor ao patamar que tinha alcançado.

Na altura, ficaste às portas da F1, a situação é conhecida, foste preterido pelo piloto russo Daniil Kvyat, com quem dividiste quarto no centro de treinos da Red Bull, em Londres… Depois disto, voltaste a falar com ele?

Claro, claro quem sim! Eu dou-me bem com o Daniil, nós vivíamos no mesmo apartamento, ao lado da fábrica da Red Bull. Eu era para ter ido viver com o Carlos Sainz – estava tudo fechado para isso acontecer, até porque somos bem mais parecidos, até pelo facto de ele ser de Madrid -, mas depois o meu chefe pediu-me, isto para aí dois anos antes de tudo acontecer, para ir viver com o Daniil, porque ele não sabia viver sozinho, e assim foi. Mas sim, já voltei a encontrá-lo. Aliás, fui eu que o apresentei à mãe da filha dele, que é a irmã do Nelson Piquet [Jr.]… Eu não guardo rancores nem mágoa, nada disso, acho que qualquer outro piloto, no lugar dele, teria feito tudo o que estivesse ao seu alcance para chegar lá. Também era o sonho dele.

Mas alguma vez lhe mandaste a boca, tipo ‘esse lugar era meu, tu sabes…’?

Não, não! Foi só ‘no hard feelings’ [sem ressentimentos].

Por falar em amizades, recentemente publicaste uma fotografia no Instagram, com o Nelson Piquet Jr, Mitch Evans, Jean-Éric Vergne e o Daniel Abt. Acompanhas com a legenda: ‘Pré-Covid. A forma como gosto de levar a vida. Corremos uns contra os outros com afinco e respeito, todos os fins de semana de corrida. Quando tiramos os capacetes, divertimo-nos’.

Esta relação saudável que vocês têm só é possível por se tratar da Fórmula E ou na F1 também acontece?

Acho que acontece mais por ser a Fórmula E, sem dúvida. Muitos destes pilotos já passaram por aquilo que eu passei, muitos estiveram na Fórmula 1 e já saíram e já dão mais valor… A nossa carreira, as corridas, ganhar, títulos, sim, tudo isso é importante, claro, mas não é preciso tirar daqui inimigos, mais vale fazer amigos. Daqui a 10 ou 15 anos deixamos de correr e podemos estar com amigos para a vida, é muito nessa abordagem que eu gosto de fazer as coisas. Gosto de ir para as corridas para ganhar, mas gosto muito de me divertir também e de aproveitar esta vida que nós levamos, porque somos de facto uns sortudos. Acho que na Fórmula E há muito esta mentalidade.

Nunca poderias ter ambicionado ser piloto de monolugares para carros elétricos, já que esta categoria foi criada muito recentemente, com a primeira temporada a realizar-se em 2014. Sentes que encontraste finalmente o teu espaço, que descobriste a categoria certa?

Talvez. Uma das. Na Fórmula E é o meu carro, a minha corrida, o meu resultado; enquanto em Le Mans, por exemplo, temos que dividir o carro com mais dois pilotos… Mas sim, dou-me muito bem com a categoria, com o estilo em que os dias de corrida são montados, os circuitos citadinos… Talvez sejam todos fatores que jogam a meu favor, mas acima de tudo trabalhar com pessoas muito inteligentes, com muito talento, viajar pelo mundo, guiar o meu carro de corridas seja na Arábia Saudita, em Santiago do Chile, LA ou em Londres… Quando fazemos as coisas com gosto, os resultados aparecem mais cedo ou mais tarde.

Mas o grande trunfo da Fórmula E está relacionado com o facto de as corridas acontecerem no centro das cidades. Achas que é aí que está a magia da prova?

Além da interatividade que tem, com os fãs e o público em geral… Correr no centro das cidades é um ponto muito, muito bom da Fórmula E. Nós levamos o show às pessoas; é uma categoria, como estavas a dizer, que tem um engadgement muito grande com os fãs, fora e dentro da pista…

Tens tido também oportunidade de acompanhar a evolução da modalidade: em 6 anos as mudanças são drásticas, mas a maior transformação é sem dúvida relacionada com as baterias dos carros. Antes tinham que mudar de carro a meio da corrida, queria perguntar-te se também treinavas esse salto entre os carros, de forma a seres o mais rápido possível…

Claro que sim! Muitas canelas esfolei eu a mudar de um carro para o outro. Podiam ser milésimos de segundo que faziam toda a diferença. Chegámos a ter reuniões de uma hora para perceber como é que aquela equipa é meio segundo mais rápida do que nós. Experimentámos uma série de coisas. Mas em apenas cinco anos tivemos carros elétricos com quase o dobro da potência e o dobro da autonomia – e isso demonstra bem a evolução que estes carros e esta tecnologia está a apresentar. Acho que estamos a cinco, seis meses de termos um carro elétrico na estrada que não fique em nenhum aspeto atrás – seja de velocidade, autonomia ou de tempo de carregamento -, a um carro a gasolina. Já há carregamentos na rua em que se carrega 80% da bateria em três minutos. Acho que estamos mesmo na iminência de ver esta grande mudança.

Não sei se já o fizeste, mas qual é a sensação de pesquisar por Fórmula E no Google e ver ‘Campeão em título: António Félix da Costa’?

Nunca fiz isso, mas tenho muito orgulho do que consegui alcançar este ano, por várias razões. Passei alguns anos complicados na Fórmula E, em que não tinha as armas certas para lutar por vitórias; por outro lado há vários pilotos muito, muito bons na Fórmula E – que vêm da F1 ou que já fizeram pódios na F1 -, e conseguir ombrear com eles e ganhar-lhes é um sentimento ótimo! E também me deixa mais descansado sabendo que se tivesse ido para a Fórmula 1 poderia ter feito isto ou aquilo, saber que poderia ser capaz, dá-me alguma paz mental.

Por falar em paz mental, ainda há semanas reforçaste que a preparação mental foi o segredo do título… Sentes que descuravas essa parte?

Já tinha feito algum trabalho mental em 2012 e 2013, com um psicólogo do desporto da Red Bull, mas ele, infelizmente, teve cancro e faleceu. Decidi não ir para mais ninguém, mas nesta fase, quando estava na quarentena, decidi voltar com um psicólogo do desporto muito bom, o Pedro Almeida, que esteve com o Benfica vários anos e acompanha várias atletas em Portugal. Foi uma ajuda muito boa que tive em vários aspetos, não só no âmbito desportivo mas na parte pessoal, do dia-a-dia, relações com a família, amigos, namorada… Tudo isto é importante porque nós estamos na pista para ganhar, mas se formos para lá com problemas pendentes as coisas inconscientemente acabam por correr mal. Também a parte de saber como gerir derrotas, mas mais importante ainda, saber como gerir vitórias, por isso foi um trabalho que foi bem feito e é para continuar.

Já te aconteceu ires a 250km/h e começares a pensar nalguma banalidade ou algum problema e pensares: ‘foca-te, foca-te, não te distraias’?

Não, não… Estamos tão focados no que estamos a fazer que isso não chega a entrar na nossa cabeça, mas pode acontecer, a seguir à qualificação ou à corrida, ser a primeira coisa que vem à cabeça, isso sim.

Já viajaste por muitos países, qual é o teu preferido? E cidade? Consegues escolher?

Tenho: adoro Estados Unidos; Nova Iorque, Miami, LA… são as três cidades em que mais gosto de estar! Adoro a mentalidade deles. Adoro Santiago do Chile, América Latina é muito giro, uma cultura bastante diferente, mas muito giro! Na Europa adoro Londres, Paris – agora tenho a sorte de passar muito tempo em Paris, porque a minha equipa [DS Techeetah] está baseada lá.

Achei que fosses escolher Berlim, depois das três vitórias na última temporada!

Passei muito tempo na Alemanha, e tenho algum amor à Alemanha, mas não tanto. Mas, muito sinceramente, não há nada como Portugal e como Cascais.

Certamente que continuas a acompanhar a Fórmula 1. Como é que viste a nova vitória do Lewis Hamilton? Igualou o Michael Schumacher em títulos, mas há quem continue a apontar-lhe o dedo e a dizer que só ganha por estar na equipa em que está (Mercedes) e por ter o carro que tem…

Acho que é uma bola de neve. O Hamilton é, neste momento, a nível de estatísticas, o melhor piloto da história da Fórmula 1. Ele é de facto muito, muito bom. Mas eu acho que se metermos os 20 pilotos da Fórmula 1 num Mercedes, qualquer um deles conseguiria ganhar corridas, mas ganhar corridas da forma consistente como ele faz… Ele não tem dias maus, não tem dias onde erra, é muito consistente! Nós vimos o [Valtteri] Bottas [companheiro de equipa de Hamilton na Mercedes] a andar à frente dele [Lewis Hamilton] mas é uma em cada três corridas! Não é a rapidez que ele tem, mas sim a eficácia de execução de fins de semana. E isto depois cria-se a tal bola de neve, ano após ano ele vai ganhando confiança e a confiança de um ser humano é um fator grande para a nossa performance.

E por falar no recorde do Schumacher, como viste o anúncio da entrada oficial do Mick na F1 em 2021?

É muito bom para o mundo da Fórmula 1. Eu sou um grande fã do Schumacher, de tudo o que fez e conseguiu. Conheci o Michael e conheço o Mick também. Não consigo sequer imaginar a pressão que ele possa ter por ter o nome que tem e ter o pai em estado vegetal, numa cama de hospital em casa. Desejo-lhe todo o sucesso do mundo. Acho que o Mick não é o piloto mais talentoso que está na Fórmula 1, mas já o vi a trabalhar e é muito, muito trabalhador, não tenho dúvidas de que vai chegar longe.

Ainda sobre a última temporada, a reta final ficou marcada pelo brutal acidente do piloto francês Romain Grosjean, no Bahrain. Também já assististe a vários sustos ao longo da tua carreira… Como se gere uma situação destas?

É muito complicado. Nesse dia eu estava em testes oficiais da Fórmula E, estava a guiar o meu carro, e quando saí contaram-me essa situação. Fui ver as imagens e passado um bocado tive que voltar a entrar no carro e custou-me! Foi um acidente brutal, a todos os níveis. E quando é com pilotos que conhecemos e gostamos ainda é mais complicado. Podia ser qualquer um de nós naquela situação, nós sabemos os riscos que corremos, por isso é que este desporto também é tão emocionante. Existe esse perigo de vida e torna a adrenalina ainda maior.

E qual foi o sentimento de teres sido condecorado pelo Presidente da República?

Foi uma condecoração surpresa?! Eu não fazia ideia! Recebi a chamada para ser recebido pelo Presidente, que supostamente queria só parabenizar-me, mas assim que entro no Gabinete está uma medalha de condecoração que eu não sabia que ia acontecer!

Foi mais um título conquistado esta época?

Eu digo sempre aos meus amigos que agora têm que me cumprimentar com continência [risos].

E além dessa distinção, qual foi a sensação de desfilar a mais de 200km/h na Avenida da Liberdade?

Foi incrível! Guiar o meu carro de corridas, o carro com que fui campeão, nas ruas onde passo praticamente todas as semanas foi uma sensação muito gira. Por causa da pandemia não pudemos divulgar o evento, para evitar ajuntamentos, mas as pessoas que estavam por lá e foram apanhadas de surpresa, algumas a correrem ao meu lado a filmar, a caírem no chão… Vi de tudo nesse dia! Mas foi um dia especial, sem dúvida.

Quando vais no carro, mas não és tu a conduzir, és aquele tipo de pessoa que vai sempre a corrigir, do género: ‘já devias estar na terceira mudança’, ‘olha o pisca’…?

Não, não! Hoje em dia até adoro andar ao lado mas preciso de proatividade, que façam bem as coisas, mas não sou esse chato [risos].

E multas? Tens coleção?

Felizmente, não! Mas apanhei uma no outro dia: troquei de carro com um amigo meu e enquanto estava a ligar o telefone ao Bluetooth do carro, um polícia viu-me e multou-me no segundo! 

Nem a ‘carta’ de campeão do mundo te safou?

Às vezes até é pior! Mas eu sei que tenho de dar o exemplo.

E gostas de conduzir no dia-a-dia?

Se puder evito, se puder ir no banco do lado melhor!

Tens um carro elétrico. Esta tomada de consciência deu-se por causa da Fórmula E ou já vinhas a tentar corrigir determinados comportamentos?

Sem dúvida que veio com a Fórmula E. Não era uma coisa com que me preocupasse na altura, mas tornou-me uma pessoa melhor em todos os aspetos! Faz-me mesmo confusão quando vejo um carro na estrada, um carro mais antigo, a deitar imenso fumo; ou até mesmo autocarros, faz-me uma confusão enorme! Na Av. da Liberdade não consegues respirar fundo sem sentir poluição e isso é uma coisa que poderá ser fácil de corrigir, se as pessoas optarem por carros elétricos!

Em miúdo alguma vez roubaste o carro aos teus pais? Como aprendeste a conduzir desde tão cedo…

Para a estrada nunca, nunca! Já aconteceu ir para uma estrada de terra, quando estamos no Alentejo, ir aprender a guiar para uma estrada de terra sem pedir aos meus pais… E eu na estrada gosto de andar devagar, sempre que entro num carro de corridas é para acelerar, com pressão e cronómetro, por isso na estrada é para andar devagar!

A uma semana do Ano Novo, já sabes os desejos que vais pedir: revalidar o título mundial e trazer uma etapa da Fórmula E para Lisboa vão ocupar-te duas passas? Ou não costumas comer?

Por acaso só peço saúde e força para continuar! Odeio passas, às vezes como, mas acho que nunca consegui comer as 12! A passagem de ano é muito psicológica, mas este ano estamos todos a precisar de virar a página. Apesar de ser só um número que muda e o mundo vai continuar igual – vamos continuar com esta pandemia, pelo menos por enquanto.

Quando terminares a carreira dentro das pistas, já comentaste que gostarias de acompanhar jovens promessas do automobilismo…

Quero muito lançar novos talentos em Portugal, daqui a uns anos, quando tiver mais tempo. Quero arranjar uma plataforma onde essas oportunidades sejam criadas; ajudar em todas as partes, em que eu próprio tive algumas dificuldades, por exemplo nos estudos. É necessário faltar às aulas para nos tornamos os melhores do mundo, seja em que modalidade for. É importante as escolas e o Governo ajudarem! Tenho várias ideias para no futuro tentar ajudar novos talentos a aparecerem, pelo menos criar oportunidades!

Começaste a viajar devias frequentar o 6.º ano. Como é que se vai para uma corrida e se faz contas à matemática ou uma composição de português?

O maior problema era até o facto de a escola não entender o que eu ia fazer: eu ia para um campeonato do Mundo de karts, onde corria contra vários pilotos que estão na Fórmula 1 hoje em dia, e a escola achava que eu ia para uma brincadeira. Ah, vais faltar cinco dias, eu chegava e metiam-me um teste à frente, de propósito, para me obrigarem a chumbar. As mentalidades estavam erradas e têm que mudar no futuro. É por isso que os americanos são tão fortes, existe toda uma comunidade do desporto, em que as próprias escolas ajudam quando há alguém com talento. E é um bocadinho isso que temos que criar porque pode haver mais 10 ou 15 miúdos a aparecer como eu – ou seja no atletismo, ou no surf ou motociclismo -, e temos que ajudar mais. 

Sentes que a melhor resposta que podes ter dado a esses professores foi conseguires um Excelente nesta disciplina?

[risos] Não o fiz com esse objetivo, não sei se viram ou não, mas acho que serve de lição para mim próprio, para não desistir. 

Começas a nova época no próximo dia 16 de janeiro, preparado para entrar a vencer?

Estou confiante de que vamos ter uma boa época! Vamos começar com o carro do ano passado. O nosso novo carro só vai entrar para a terceira prova do ano, mas isso tem algumas vantagens, porque já conhecemos exatamente aquilo que temos. Temos um carro ganhador e, agora, em Santiago do Chile, no dia 16, vamos ver onde realmente estamos a nível competitivo. Acredito que podemos lutar novamente pela vitória.