Covid-19. A maratona da vacinação

As primeiras vacinas da covid-19 chegam a Portugal no sábado e a vacinação arranca no domingo. Na segunda-feira chegam mais 70 mil doses e, ao longo de janeiro, 80 mil a cada semana. Nos hospitais e nos lares abre-se um novo capítulo do combate à covid-19.

A mais complexa operação de vacinação de sempre na história do país – e, em simultâneo, no resto do mundo – começa em Portugal este fim de semana. Mais de meio século depois de o país ter visto as primeiras vacinas contra uma doença infecciosa, corria o início da década de 60 e o inimigo era o poliovírus, identificado décadas antes como o causador da poliomielite, e de muitos avanços ao longo da história do Programa Nacional de Vacinação, que quase erradicou o sarampo e todos os anos previne complicações maiores da gripe, desta vez bastou nem um ano para a ciência conseguir uma arma contra o novo intruso. E depois de dez meses numa maratona contra o vírus sem a ajuda adicional de uma vacina, inicia-se o que será também uma maratona de vacinação pelo meio da pandemia em curso, com uma operação logística complexa e um pouco mais de luz ao fundo do túnel.

Esta quinta-feira, o Ministério da Saúde e a task force nacional, coordenada por Francisco Ramos, ultimaram os planos para o arranque. A nível europeu, a Pfizer/BioNTech, que esta semana teve luz verde da Agência Europeia de Medicamentos para a comercialização da vacina – a primeira licenciada formalmente na União Europeia –, alterou os planos de entregas e conseguiu antecipar a distribuição de mais doses do que estava previsto, anunciou a ministra da Saúde. Segundo este semanário apurou, não é alterado o total de vacinas da Pfizer esperado no primeiro trimestre do ano, cerca de 1,2 milhões, mas, até ao final de janeiro, o país tem agora a garantia de poder ter mais 70 mil vacinas, numa antecipação das entregas.

Depois das duas caixas com 9750 doses que chegam ao país este sábado, na segunda-feira são esperadas mais 70 200. E em vez de uma entrega ainda este ano meramente simbólica e uma entrega única no início de janeiro de 300 mil doses, como estava previsto, vão existir entregas semanais de cerca de 80 mil doses ao longo das quatro semanas de janeiro. Assim, o país vai receber até ao final de janeiro perto de 400 mil doses, o suficiente para vacinar cerca de 160/170 mil pessoas, já estimando a existência de quebras. 

Lares com vacinas em janeiro

A primeira fase de vacinação, que abrange utentes de lares e cuidados continuados e respetivos funcionários, doentes com maior risco de ter quadros graves de covid-19, profissionais de saúde e forças de segurança, num total de 950 mil pessoas, só deverá ficar concluída em abril, o que permite perceber a corrida de fundo pela frente. Segue-se a segunda fase da vacinação, que abrangerá idosos com mais de 65 anos e doentes crónicos com mais de 50. E só por fim a restante população, previsivelmente só no segundo semestre de 2021, dependendo das vacinas que vierem a ser aprovadas e do calendário de entregas garantido pelas farmacêuticas. 

Se os planos são estes, ao longo do primeiro trimestre de 2021 é esperado o desenho das etapas seguintes. Agora, até ao final do ano serão vacinados profissionais de saúde mais expostos e na linha da frente, e com as doses adicionais que o país vai receber ficarão vacinados 60% dos médicos e enfermeiros identificados pelos hospitais na linha da frente da resposta à covid-19, onde se inicia a vacinação. Em janeiro começa a vacinação nos lares, onde se espera a inoculação de 118 mil pessoas, com o mês de fevereiro a concluir a imunização deste grupo mais frágil.

Começa também em fevereiro a vacinação nos centros de saúde, que irão chamar os doentes de risco. As listagens serão feitas pela Administração Central do Sistema de Saúde com base na informação codificada nos processos clínicos e triada pelos médicos de família. A convocatória será por SMS. A partir de março deverão abrir centros de vacinação em edifícios municipais, quando for altura de escalar a operação e houver mais vacinas.

Ao aprovar a vacina da Pfizer, a Agência Europeia do Medicamento apresentou os resultados conhecidos até à data dos ensaios clínicos, que mostram que a vacina apresentou uma eficácia de 95% na prevenção de casos sintomáticos de covid-19. Não houve, no entanto, uma estratificação por idades e os especialistas têm alertado que perceber a resposta imunológica dos doentes mais idosos e frágeis ao longo dos primeiros meses é uma das variáveis em falta para avaliar quanto tempo demorará a atingir a imunidade de grupo, que num vírus com a taxa de transmissão do SARS-CoV-2 implica que 60% a 70% da população tenha anticorpos. Veja-se o sarampo, mais contagioso do que o coronavírus, e que implica que 95% da população tenha anticorpos – e, nos últimos anos, a quebra dessa proteção em alguns países com movimentos antivacinação levou ao recrudescimento de casos de uma doença em que as vacinas fizeram a diferença e, em Portugal, registou os últimos grandes surtos na década de 80.

Em entrevista a este jornal, João Gonçalves, professor da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa e um dos peritos ouvidos na última reunião do Infarmed, admitiu que a imunidade de grupo poderá só ser atingida a partir do terceiro trimestre de 2021. Até lá, e pelo menos nos primeiros meses do ano, enquanto são vacinados os grupos mais vulneráveis e se percebe se há uma redução nos internamentos e mortalidade mesmo que aumentem as infeções, será necessário manter os cuidados e as medidas apertadas contra a covid-19. Às incertezas que já existiam juntaram-se, nos últimos dias, as dúvidas sobre a nova variante do SARS-CoV-2 detetada no Reino Unido, que afeta a peça do vírus que é o alvo dos anticorpos e que não se sabe ainda se interfere com a eficácia das atuais vacinas. E mesmo que os receios se desvaneçam, isto deixa no horizonte um cenário em que, a qualquer momento, as farmacêuticas podem ter de adaptar as vacinas a novas variantes do vírus que surjam. 

Por agora, é mesmo um virar de página a fechar o ano. Muitos pormenores da operação logística têm sido mantidos em sigilo, não só em Portugal mas por toda a Europa, e as autoridades invocam razões de segurança. As vacinas chegarão a Portugal sábado e serão guardadas num armazém na zona de Coimbra, com capacidade de refrigeração a -70 ºC, uma das exigências adicionais desta primeira vacina aprovada. As duas primeiras caixas com as 9750 doses serão então divididas por cinco caixas e levadas para os hospitais. Um dos momentos simbólicos da vacinação deverá acontecer no São João, o hospital onde estiveram internados o maior número de doentes com covid-19 – tanto na primeira vaga como na atual. E enquanto os europeus preparam o Natal, as vacinas da Pfizer deixam por estes dias a pequena vila belga de Puurs, onde estão a ser produzidas num complexo industrial que se tornou dos mais valiosos ativos dos últimos tempos, localizado entre o aeroporto de Bruxelas e o de Antuérpia. Não é dito se vêm de avião ou camião, mas tudo indica que os constrangimentos desta semana na circulação europeia não afetarão as entregas. Até aqui, Puurs só era conhecida por ser a terra da cerveja Duvel, diabo em holandês, isto para os apreciadores que dominam o assunto. Tornou-se para todos uma espécie de Lapónia a distribuir o presente de última hora em ano de pandemia.