Nos hospitais este ano também não há festas de Natal

O número de doentes internados com covid mantém-se elevado e nos intensivos não se sente uma grande diminuição. Um aumento de casos depois das festas preocupa mas acredita-se também no comportamento dos portugueses. Como chegam o S. João e o Curry ao Natal?

Nos hospitais este ano também não há festas de Natal

Nesta altura costuma haver festas de Natal também nos hospitais. Um almoço, um lanche, uma pausa mais natalícia. Por estes dias, os convívios ficaram adiados: as medidas de contingência limitam desde logo quantos colegas fazem refeições e pausas nas salas, mas não faltará alguém que leve um bolo-rei ou qualquer outro mimo. A 300 kms de distância, Nelson Pereira, responsável pela unidade de gestão da Urgência e Medicina Intensiva do Hospital de São João, no Porto, e Fernando Maltez, diretor do serviço de Infecciologia do Curry Cabral, em Lisboa, descrevem ao SOL expectativas parecidas para o Natal, onde não haver os convívios de outros Natais não é a maior preocupação – apenas um reflexo dos cuidados que continuam a existir.

Nos últimos meses, e tratando-se de grandes centros hospitalares de fim de linha, foram estes os hospitais que tiveram mais doentes internados com covid-19. A segunda vaga continua a dar luta e o desejo é que a folga do Natal não traga um grande recrudescimento de casos. Mas há preocupação, até porque continuam a ser muitos os doentes com covid internados, em especial nos cuidados intensivos – acima de 500, mais de metade das camas hoje disponíveis no país. 

No São João eram ontem 41 e no Curry 35, em ambos os hospitais sem sinais de abrandamento enquanto nos internamentos gerais têm-se notado estabilização depois de uma descida que se sentiu sobretudo na zona Norte, onde se viveu um aumento explosivo de casos em outubro/novembro. «Chegamos ao Natal com uma situação de planalto. Nas últimas  semanas houve uma descida das pessoas com sintomas suspeitos a recorrer à urgência, em linha com a diminuição da incidência no grande Porto, mas agora tem estado estável e não houve uma diminuição para níveis tão baixos como tivemos no fim da primeira vaga. Em enfermaria houve uma diminuição mas ainda temos mais de 100 doentes. Em cuidados intensivos não há uma diminuição tão significativa e essa é a nossa maior preocupação», descreve Nelson Pereira. 

No São João, há agora 80% dos doentes em UCI que chegaram a ter no pico desta vaga, mas isso significa que não foi possível desmobilizar ainda todos os meios que tinham sido afetados ao alargamento dos cuidados intensivos para doentes covid, sabendo-se que nesta altura do ano a tendência é a necessidade de internamentos aumentar – seja por infeções respiratórias ou descompensação de doença crónica. «Se de repente houvesse um recrudescimento significativo de casos de covid-19, tínhamos uma linha de base menos favorável do que aconteceu nas outras vagas», alerta o médico, que assume que se divide  num otimismo expectante sobre o que está para vir. «Tenho esperança que não haja um descontrolo como tivemos nesta segunda vaga. Mas como não voltámos à linha de base, mesmo um pequeno ou moderado aumento de casos pode trazer uma pressão em UCI muito significativa porque chegamos ao Natal ainda com bastantes doentes internados». 

No Curry Cabral, Fernando Maltez diz que não se sente ainda um abrandamento no número de doentes, a expectativa que começou a desenhar-se no estado de emergência e medidas para achatar a curva. E os números ajudam a perceber: apesar da região de Lisboa ter tido uma menor incidência do que a região Norte, o Curry Cabral tem agora tantos doentes internados como o São João, em torno de 135. «Estamos cheios. Estamos com a nossa ocupação quase a 100%, embora haja sempre possibilidade de nos estendermos um pouco, mas significa que são muitos doentes e particularmente nos cuidados intensivos não temos notado uma diminuição de doentes», afirma.

Fernando Maltez admite que a expectativa é que as medidas antes do Natal não sejam daqui em diante «demasiadamente aligeiradas» e que as pessoas adotem as medidas preventivas que permitiram um maior controlo da epidemia desde que foi decretado o estado de emergência. «A minha expectativa é que o Natal não inverta esta tendência. Que as pessoas entendam esta abertura que foi dada para o Natal como um prémio, um voto de confiança dos governantes depois do comportamento da população no estado de emergência e que as coisas não resvalem de novo. No horizonte temos agora a vacina. É um momento fundamental para não aligeirar as medidas e, mantendo os cuidados, temos a perspetiva de, quando as pessoas estiverem vacinadas, podermos acaba com isto».

O que dizem os doentes?

O perfil dos doentes internados não tem mudado muito: maioritariamente mais velhos, mas de todas em idades. E também em UCI doentes na casa dos 40 e 50 anos. Como se infetaram? Aqui, as respostas também não são novas mas ajudam a perceber o risco destes dias. «Não há nenhum segredo. Infectamo-nos com pessoas que conhecemos. Contactos próximos e mais íntimos é que produzem a maioria dos contágios, seja nas famílias, empregos, círculos de amigos», resume Nelson Pereira. 

Fernando Maltez acrescenta que, com a infeção disseminada, muitas vezes não é possível estabelecer as cadeias de transmissão. Nem os próprios suspeitam, a menos que trabalhem ou saibam que estiveram com alguém infetado. «A infeção está de tal modo enraizada na comunidade, o número de cadeias de transmissão e o emaranhado é de tal maneira complexo, que é muito difícil percebermos ao certo onde as pessoas se infetaram. E a partir do momento em que a infeção está disseminada basta qualquer gesto inadvertido, impensado, qualquer situação de stresse, pegar num objeto e depois por a mão na cara, nos olhos», exemplifica.

E por isso o apelo é manter os cuidados, enquanto nos hospitais se vive mais um Natal de trabalho, depois de um ano que pôs as estruturas à prova. Estado de espírito das equipas? Cansadas mas a aguentar. «Claro que informalmente vão partilhando esse receio para as próximas semanas, ouve-se aquele: ‘já chega’, ‘não queremos mais’», diz Nelson Pereira. «Muitos ficaram com metade das férias para gozar, sem saber o que nos vai trazer o próximo ano». 
Fernando Maltez também reconhece o cansaço, mas não desarma: «Os profissionais são resilientes e têm espírito de serviço. Apesar de nesta altura custar mais, vão continuar a dar o melhor.» E se este ano ainda não dá para festas de Natal entre colegas – «Nos hospitais e nos serviços dedicados a estes doentes, foram todas canceladas» –, também nisso pode haver serviço público: «Temos de ser os primeiros a dar o exemplo».