Nesta sociedade não há verdadeiro Natal

Nesta sociedade, em que todo o dinheiro acumulado nos grandes bancos e em contas offshore chegava para eliminar a pobreza deste mundo e não o faz, não há verdadeiro Natal.

Por António Galopim de Carvalho, Professor Universitário 

Este ano, ao contrário do que sempre fiz, não enviei votos de Boas Festas. Enviei, sim, votos de boa saúde e é com estes que estou a agradecer e retribuir todos, e são muitos, os votos de Boas Festas que tenho recebido. Mais do que festa, o que todos precisamos é de nos defendermos de uma ‘coisa’ que nem vida é e que está a afetar milhões de pessoas e famílias por todo o planeta.

O meu, muito meu, Natal foi o de, enquanto filho, em criança, pôr uma das minhas botas na chaminé e esperar ansiosamente por aquilo que o Menino Jesus lá colocasse, e depois, em adulto, me reunir com os meus cinco irmãos na casa paterna. Na noite de Natal, a mesa ficava diferente. Vestia-se com toalha própria, bordada, guardada de ano para ano. Diferentes eram também os pratos, os copos e os talheres e, sobretudo, diferente era a ementa, sempre a mesma e especial para essa noite. Nunca repetidas noutras ocasiões, tais iguarias davam-lhe o dom festivo da quadra e a sua memória ensalivava a espera da meia-noite. Hoje e de há muitos anos, o meu Natal é, sobretudo, o dos filhos e dos netos. Um Natal em que, depois de ter idade para pensar, ao festejá-lo à mesa bem recheada das ditas iguarias, sempre senti uma espécie de culpa face aqueles que nem pão têm para comer.

Um Natal em que a sociedade do presente não tem condições para manter os velhos no seio da família não é Natal em festa. Numa sociedade que inventou os chamados lares, que de lares nada têm, em que a grande maioria dos velhos aí ‘arrumados’, privados do convívio da família que construíram, apenas aguardam o fim da vida, não há Natal. Na origem, lar é a divisão da casa onde se acende o lume, a lareira, e que, a partir daí, passou a significar habitação familiar. E nos ‘lares’, essa instituição do século XX, fruto da sociedade do desenvolvimento, os nossos velhos estão a morrer antes do tempo, apanhados por essa ‘coisa’ chamada coronavírus. Nesta sociedade, em que todo o dinheiro acumulado nos grandes bancos e em contas offshore chegava para eliminar a pobreza deste mundo e não o faz, não há verdadeiro Natal.

Recordando o meu viver, neste ano de 2020, dominado pelo peso do covid-19, saliento os meus pensamentos relacionados com esta imensa pandemia que a todos afeta, em especial os mais idosos. Neles está a necessidade de uma profunda reflexão em vários domínios da nossa vida coletiva, a todas as escalas nacionais e internacionais, entre os quais, e com mais destaque, o ensino, as videoconferências, as reuniões de trabalho dos mais variados domínios e o trabalho à distância. Há, pois, que repensar toda a sociedade, a começar pela economia, com tudo o que ela implica nas relações do trabalho, na harmoniosa distribuição da riqueza, na sobre-exploração das reservas naturais, na poluição do ar, das águas, e dos solos, sob pena de pôr um fim à nossa sobrevivência. Nesta reflexão só podemos concluir que a nossa sociedade tem de mudar e que, se não repensarmos, para melhor, este nosso desumano padrão de vida, ela irá mudar num quadro de grande sofrimento. Não sabemos quando, mas irá mudar.