O Natal

Num tempo em que Portugal desperta para uma onda de realismo, abrupto e estonteante com indicadores estruturais muito sombrios e agravados pela pandemia, os seus responsáveis pedem a inspiração dos magos que adiem aquilo que não souberam prever nem evitar.

Por Filipe Anacoreta Correia

Advogado

Em Lisboa, no dia 21 de dezembro tivemos sol durante 9h 27m 04 s (dados do Observatório Astronómico de Lisboa). No dia anterior e no dia posterior haverá mais um segundo de sol. E em todos os outros do ano, o tempo de sol será sempre mais duradoiro.

Os cristãos assinalaram o dia do nascimento de Jesus a partir do momento mais escuro do ano – o solstício de inverno. Esta opção encobre uma convicção forte: Deus, a Luz, visita-nos na noite mais escura.

O tempo do Natal, que tantas vezes parece mágico e irreal, nas músicas, nos adornos, na representação idealizada da família e do amor, nasceu precisamente da experiência contrária: uma família em trânsito, sem casa nem brilho nem espaço em nenhuma hospedaria, sem outra atração que não a noção essencial da vida que nasce.

O tempo de Natal não parece, mas pode ser também, o elogio do real sobre o virtual. Não interessam tanto os likes, o ruído e a aparência que se sobrepõe à verdade simples. Mais do que perceções – que constroem uma narrativa em política – importam os factos, a realidade mesmo que dura e crua.

Noutra tradição enaltece-se o teatro das sombras, atribuído ao imperador Wu’Ti. Por volta do ano 121, entristecido com a morte da sua bailarina predileta, o imperador terá ordenado a um mago que trouxesse a bailarina de volta. Receoso pelo seu futuro, o Mago apelou à criatividade: munindo-se de uma silhueta com formas femininas de pele de peixe, uma cortina branca e luz do sol, o mago conseguiu diante do imperador fazer a bailarina movimentar-se ao sabor do vento.

A lenda, ao que sei, não nos conta o que terá acontecido, mas a avaliar pela tradição e popularidade do teatro das sombras chinesas parece que o imperador terá ficado não só satisfeito com a beleza do bailado das sombras, como depressa esqueceu aquela, cuja ausência outrora ensombrava os seus dias. A realidade sombria deu lugar ao mundo das sombras com vida. Da bailarina nada sabemos, exceto que foi a inspiração de uma criação que ganhou forma, se autonomizou e se tornou muito mais popular do que a própria realidade.

O risco de encantamento das sombras, como se vê, não é de agora.

Certos políticos têm denotado um encantamento deslumbrado pela teatralização da ficção. Num tempo em que Portugal desperta para uma onda de realismo, abrupto e estonteante com indicadores estruturais muito sombrios e agravados pela pandemia, os seus responsáveis pedem a inspiração dos magos que adiem aquilo que não souberam prever nem evitar.

De entre estes, tem-se destacado António Costa, sem dúvida o mais exímio mago, aquele que mais mestria tem na arte das sombras.

Respondem-lhe na mesma moeda, os populistas que com números mediáticos aprofundam a perceção de um mundo virtual e, com a disseminação do descontentamento e do medo, prometem a ilusão como solução para o real que não encaram.

O ano de 2021 requer de todos nós outra história, que encontre os portugueses onde estão, desprotegidos de um Estado ausente, expostos a ideologias que matam, incapazes de crescer, de criar bem estar, manipulados por ventos que promovem perceções ficcionais.

Não é tempo de bailados encantados. Bom ano para todos.