Batatas p’rá Constituição

Marcelo Rebelo de Sousa não pode assinar de cruz leis que sabe estarem feridas de inconstitucionalidade. Enquanto Presidente, não pode.

Está no site da Presidência:«Apesar das limitações a maior ênfase social, do renovado não acolhimento de algumas pretensões empresariais e da existência de soluções de caráter programático, na fronteira da delimitação de competências administrativas, considerando as complexas condições que rodearam a sua elaboração e a busca do equilíbrio entre o controlo do défice, a adoção de medidas relevantes em domínios como a saúde e os rendimentos dos mais sacrificados, e, sobretudo, a óbvia importância de os portugueses disporem de Orçamento de Estado em 1 de janeiro de 2021, atendendo à urgência do combate à pandemia e seus efeitos comunitários, bem como à adequada receção das ajudas europeias, designadamente, do Plano de Recuperação e Resiliência, o Presidente da República promulgou o diploma da Assembleia da República que aprova o Orçamento do Estado para 2021».

Esta nota anunciando a promulgação pelo Presidente da Lei do Orçamento do Estado para 2021 é inequívoca: a urgência da entrada em vigor daquela lei a 1 de janeiro – sobretudo tendo em conta o ‘combate à pandemia e seus efeitos comunitários’ e a ‘adequada receção das ajudas europeias’ – sobrepõe-se a quaisquer outras razões que aconselhassem a sua não promulgação. Designadamente, o facto inquestionável de este Orçamento do Estado violar clara e frontalmente a Constituição da República.

Com efeito, o n.º 2 do art. 105.º determina que o «Orçamento é elaborado […] tendo em conta as obrigações decorrentes de lei ou de contrato». É taxativo e não deixa margem para a mais ínfima dúvida: a norma aprovada em sede de especialidade (proposta pelo BE e que contou com o apoio do PSD) que proíbe a transferência da última tranche do Fundo de Resolução para o Novo Banco é inconstitucional, porque viola contratos assinados  pelo Estado. Além dos casos que estão na ‘fronteira’ da ‘delimitação de competências’ – como sugere a nota da Presidência –, no caso do Novo Banco o Parlamento passou mesmo o risco.

Não interessa se concordamos ou discordamos dos contratos em causa – que, aliás, continuamos a desconhecer –; importa que o Estado assumiu obrigações e não pode deixar de as cumprir.

O princípio segundo o qual o Estado pode simplesmente incumprir as suas obrigações é tão grave como a incerteza que está criada sobre a real prevalência da Constituição, enquanto Lei Fundamental, sobre todos os atos legislativos, administrativos e judiciais do Estado e seus agentes.

O Presidente da República, no ato de posse, faz um único juramento para além do compromisso de exercer com lealdade as funções que lhe são confiadas: cumprir e fazer cumprir a Constituição.

Não pode haver circunstância alguma que legitime o incumprimento da Constituição.

Porque mesmo as circunstâncias excecionais, quando invocáveis e se existirem, têm de estar nela previstas.

De outro modo, altere-se a Constituição.

Se a Constituição tem regras que são passíveis de serem derrogadas sem nela estar previsto que assim possa acontecer e em que circunstâncias pode acontecer, mesmo que excecionais, adapte-se a Constituição em conformidade.

 

Quando o cumprimento ou o incumprimento da Lei Fundamental fica ao livre arbítrio da oportunidade, da urgência ou do entendimento ocasional de quem exerce o poder legislativo, executivo ou judicial perde-se a certeza e a segurança que tem de ser apanágio de qualquer Constituição num estado que, no seu texto constitucional, se diz de direito democrático.

Sob pena de não podermos ter certeza alguma.

O que não é democrático.

Se há função confiada ao Presidente da República é ser ele o garante da Constituição – mais do que ao Tribunal Constitucional, que existe para apreciar os casos concretos da constitucionalidade e da legalidade na nossa ordem jurídica.

Concorde ou não com os seus trâmites.

Ora, um reputado constitucionalista como Marcelo Rebelo de Sousa tem ainda mais obrigação de não assinar de cruz os diplomas enviados para Belém.

O que Marcelo fez com o OE 2021, pela urgência do ‘combate à pandemia’ e pela ‘receção das ajudas europeias’, foi o mesmo que o Governo fez ao decretar a proibição de circulação entre concelhos sem estar em vigor o estado de emergência.

Os fins até podem ser nobres, seja a saúde pública seja a revitalização da economia. Mas não justificam os meios.

Relativizar a Constituição – como António Costa já declaradamente o fez ou como Marcelo Rebelo de Sousa acaba de o fazer – é atentar contra a democracia.

E é imperdoável, porque eles sabem muito bem o que fazem e, a coberto da pandemia, lavam daí as suas mãos.

Pormenores, dirão. Mas não são, não.

Mandar a Constituição às malvas é o mesmo que a não ter.

Se 2020 dificilmente poderia ser pior, que 2021 seja muito, mas muito melhor!