Entre brancos e negros, claros ou escuros

Os alemães fundaram os primeiros clubes do Rio Grande do Sul. Eram uma comunidade numerosa e organizada.

Em 1824, milhares de alemães surgiram em Vale dos Sinos e em São Leopoldo, não longe de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. E, espantem-se se quiserem: não se tratou de uma invasão militar, algo em que os alemães são especialistas desde o tempo dos godos, visigodos, ostrogodos, alanos, hunos e outros do mesmo género. Emigração pura e dura de gente que acreditava encontrar aí um lugar melhor para viver. Instalaram-se os primeiros, vieram outros e outros ainda, e chegaram à mesma conclusão: não podiam ter encontrado lugar mais aprazível. Espalharam-se pelos arredores aos bandos: Santa Maria, Santa Cruz do Sul, São Lourenço do Sul, Rio Grande e, inevitavelmente, Porto Alegre. Setenta e seis anos depois, em 1900, na dobragem do século, eram já 35 mil. Uma pequena Alemanha dentro do Brasil. Um deles destacava-se dos demais pelo seu espírito empreendedor. Chamava-se Johannes Christian Moritz Minnemann, viera de Hamburgo, e trabalhava para a empresa Thompsen, situada na Lagoa dos Patos, nos arredores da cidade portuária de Rio Grande. Era um tipo bem disposto que usava uns bigodes empinados de tal forma que parecia que tinham as pontas penduradas em balões de hélio. Eram de fazer inveja ao kaizer Guilherme, se este alguma vez tivesse querido saber do que andavam os seus compatriotas a engendrar pela América do Sul.

No dia em que cumpriu 25 anos, Minnemann, que tinha uma alma generosa e disponível, resolveu oferecer uma prenda aos seus amigos, invertendo o habitual desenrolar dos factos. Num discursozinho proferido em alemão, confessou-lhes que acabara de fundar um clube de futebol, o Sport Club Rio Grande. Os convivas trataram de afogar a sua alegria em cerveja, beberam até cair de borco, e Rudolf Dieticker, um dos mais efusivos, foi nomeado presidente na nova instituição, tão indiscutivelmente germânica que os estatutos originais estavam escritos nessa língua. Poucos dias depois, os foliões enfiavam-se num comboio e foram até à vizinha Pelotas mostrar que existiam. Três anos mais tarde, com a ambição em crescendo, visitaram Porto Alegre e realizaram aí o primeiro jogo de futebol da história da cidade. Infelizmente, havia um pormenor desagradável. O Sport Club Rio Grande era filho único. Não tinha clubes contra os quais medir forças. A digressão reduziu-se a uma partida muito pouco excitante entre os titulares e os reservas. Para compensar, a cerveja correu a rodos e puderam regressar a casa todos com um grãozinho na asa.

A viagem do Sport Rio Grande a Porto Alegre buliu com o o brio dos alemães da capital. Os ciclistas do Rodforvier Verein Blitz fundaram o Fussball Club Porto Alegre e um moço chamado Cândido Dias da Silva juntou-se aos seus companheiros Bohrer, Siebel, Kallfelz, Schuck e Uhrig para formar o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense. Estava instalada a rivalidade. Uma rivalidade saudavelmente germânica.

Os gaúchos gabam-se de ter um futebol diferente de todo o resto do Brasil. Pelo menos num ponto têm razão: é diferente na sua génese. Fussball e Grêmio não tardaram a quererem jogar um contra o outro sem ser a feijões. Ou, no caso, mais provavelmente a kartofel e sauerkraut. Inventaram um troféu: o Wanderpreis. Assim traduzido às três pancadas pode dizer-se que era a Taça da Caminhada, ou algo do género.

Foi por esta altura que chegaram a Porto Alegre os irmãos Henrique, José Eduardo e Luiz Madeira, mais conhecidos pelos manos Pope. Vinham com vontade de se tornarem sócios e jogadores do Grêmio, um clube um pouco mais aberto do que o Fussball, mas bateram-lhes com a porta na cara. Não eram suficientemente altos e louros e não comiam todos os dias salsichas com mostarda.

Nesse tempo, a melhor resposta a dar a uma nega do género, era a de fundar um clube, nem que fosse só para embirrar. Nasceu então o internacional de Porto Alegre que atacava as raízes burguesas do Grêmio e do Fussball aceitando no seu seio todo o género de pessoas e profissionais, numa atitude liberal e cosmopolita muito adiantada para a época. Claro que havia limites para tanta liberalidade: os negros ficavam de fora. Que jogassem entre eles. E foi o que fizeram.

Entre os morros da independência e de Mont_Serrat, Porto Alegre tinha, segundo o senso consultado de 1872, muito mais africanos do que alemães: 67 mil. Na sua grande maioria escravos. O que não quer dizer que não tivessem a sua centelha de orgulho. Impedidos de entrarem até no liberal Internacional, formaram um campeonato formado por clubes de jogadores coloridos e que tinham nomes populares como Primavera, Bento Gonçalves, União, Palmeiras ou Primeiro de Novembro. E havia também o Riograndense. Especialíssimo! No grupo de clubes de negros que combatiam o racismo alemão, o Riograndense era profundamente racista: só aceitava mulatos. Já não era uma questão de brancos e pretos. Era uma questão de claros e escuros. Ainda está para nascer um clube de daltónicos…

afonso.melo@newsplex.pt