Sob o signo da vacina

Se antes do covid a situação nos hospitais públicos já era calamitosa (graças às cativações de Mário Centeno, então ufano ministro das Finanças, e ao regime das 35 horas, que António Costa ofereceu, demagogicamente, à função pública, à caça de votos), o que se seguiu foi mascarar a realidade, como se tudo estivesse no melhor…

Num assomo de rara humildade, a condizer com a quadra, António Costa dirigiu uma mensagem aos portugueses na qual reconheceu que «certamente não fizemos tudo bem e cometemos erros, porque só não erra quem não faz». O simples facto de tê-lo dito consigna uma evolução no pensamento do primeiro ministro – ou uma mudança de estilo – sem antecedentes, mesmo quando foi confrontado com a devastação e as vítimas dos incêndios de Pedrógão Grande. Um avanço.

Até meados de dezembro, quase sete mil pessoas morreram vítimas da covid. Mas o excesso de mortalidade, por comparação com 2019, agravou-se e somou mais nove mil óbitos, com diferentes patologias, talvez evitáveis se essas pessoas tivessem sido acudidas a tempo no SNS, há muito esgotado e com intermináveis listas de espera de consultas, exames ou cirurgias.

Se antes do covid a situação nos hospitais públicos já era calamitosa (graças às cativações de Mário Centeno, então ufano ministro das Finanças, e ao regime das 35 horas, que António Costa ofereceu, demagogicamente, à função pública, à caça de votos), o que se seguiu foi mascarar a realidade, como se tudo estivesse no melhor dos mundos.

O resultado não poderia ser mais desastroso. E, apesar disso, chegados à fase da vacinação, ainda se teima em concentrá-la nos centros de saúde, excluindo, para já, a rede de farmácias e de outros prestadores privados, como se tivessem peste, cumprindo os desígnios ideológicos da ministra Marta Temido.

Com António Costa obrigado a isolamento profilático em S. Bento, coube a Marta Temido protagonizar o show mediático da chegada e aplicação das primeiras vacinas contra a covid. E não foi bonito de se ver.

A ministra andou num virote, fez-se às fotos e às televisões sem cerimónia, como se o mérito da operação fosse seu e do Governo e não da Comissão Europeia, que negociou e centralizou a aquisição das vacinas para os países membros. Uma tristeza.

A mesma ministra que deixou milhares de portugueses ‘pendurados’ sem a vacina da gripe sazonal, depois de tê-la prometido a todos, não teve o menor pudor em mostrar-se, numa ação de marketing e de propaganda pura, com a ajuda (subserviente…) dos media. Uma lástima.

Foi um gesto tão bizarro como o aparato da escolta aos camiões com a vacina, filmados exaustivamente pelas televisões, até ao destino, supostamente ‘secreto’. Afinal, um segredo de Polichinelo…

Percebeu-se o sobressalto de António Costa. O pior é que não se vislumbra que queira corrigir os erros cometidos. É da natureza do PS quando ocupa o poder.

Recorde-se o que foi a ação nefasta dos governos socialistas de José Sócrates, que conduziu o país à beira do abismo, em 2011. Mesmo com o navio a afundar-se, as inaugurações e os eventos espampanantes e orquestrados nunca pararam.

Sabe-se o que aconteceu a seguir, com a troika, a austeridade e o dramático apertar do cinto, enquanto o PS ‘assobiava ao cochicho’, alijando descaradamente as suas responsabilidades.

Mas não são apenas os socialistas a ‘empurrar com barriga’. Veja-se o caso da Justiça e a gestão de processos mediáticos.

Convirá recordar, a propósito, neste último dia do ano, o manto de silêncio que recaiu sobre a Operação Marquês e o prazo indeterminado que o juiz de instrução do processo se atribuiu, alegando a sua complexidade.

Note-se que foi no início de julho que o juiz Ivo Rosa anunciou, concluída a fase instrutória, e em direto para as televisões – algo raro nos tribunais -, que não poderia ser considerado o prazo de dez dias que a lei prevê para decidir se José Sócrates e os outros 27 arguidos iriam ou não a julgamento. Para aquele magistrado seria «humanamente impossível» proferir uma decisão justa e fundamentada.

Aceitou-se o despacho e ficou-se em espera. Decorrido quase meio ano, há uma incerteza espessa sobre o desfecho do processo.

Convenhamos que não é normal uma tal dilação, sobretudo quando o mesmo magistrado tem o processo em mãos desde finais de setembro de 2018, quando lhe coube em sorteio atribulado. Tem obrigação de conhecê-lo bem, apesar de volumoso.

A lentidão da Justiça é exasperante. Em contrapartida, nos bastidores, há outras prioridades, como seja o controverso despacho da atual PGR, relacionado com a subordinação hierárquica dos procuradores.

Entre a investigação e o julgamento cava-se, entretanto, uma eternidade, que diminui a eficácia da Justiça.

Ora quando um ex-primeiro ministro está acusado de numerosos crimes (incluindo corrupção, branqueamento de capitais, falsificação de documento e fraude fiscal, a maioria dos quais em coautoria com pelo menos um dos restantes arguidos), conviria que a Justiça não se arrastasse ‘a passo de caracol’.

O certo é que tudo continua em ‘banho Maria’, e não consta que o Conselho Superior da Magistratura se interrogue sobre o andamento de um processo que, queira-se ou não, também ‘julga’ a justiça.

O balanço de 2020 não é lisonjeiro para o primeiro ministro. Compreendem-se, por isso, as cautelas na sua mensagem natalícia.

Ironicamente, a sobrevivência do atual governo deve-se muito à pandemia que nos bateu à porta, desviando as atenções para as suas contingências e restrições.

Quanto aos ‘indignados’, calaram-se pudicamente com a nomeação de Mário Centeno para governador Banco de Portugal, saído diretamente do Ministério das Finanças; ou com a não recondução de Joana Marques Vidal, na PGR, e de Vítor Caldeira, no Tribunal de Contas, apesar dos encómios com que foram distinguidos, tanto pelo primeiro ministro, como pelo Presidente da República.

Embora a Constituição não imponha o mandato único – havendo antecedentes que o comprovam em ambos os cargos -, a realidade é que António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa acordaram, em conivência, a substituição dos dois titulares, apesar da sua excecional craveira e do mérito reconhecido por ambos.

Moral da história: o PS tolera mal os órgãos e as personalidades independentes, que levam a sério a missão de serviço público. E o Presidente não fez ‘finca-pé’ para mantê-los.

Por sinal, numa declaração recente à TVI, Marcelo Rebelo de Sousa descaiu-se e teve a frase do ano: «Os portugueses foram enganados». Referia-se ao facto de Marta Temido ter garantido que haveria vacinas da gripe sazonal para todos, algo que não aconteceu.

Infelizmente, houve muito mais. Faltam os dedos para contar as vezes que os portugueses foram ultimamente enganados…