Mário Zambujal: “Raramente defino um protagonista, deixo que ele se defina por aquilo que vai fazer”

Passaram-se já quarenta anos da publicação de Crónica dos Bons Malandros, o ‘livrinho’ com que Mário Zambujal se fez escritor. Data redonda para o regresso da quadrilha com a adaptação à série televisiva por Mário Botequilha e Jorge Paixão da Costa, mote  perfeito para uma conversa.

Primeiro encontro com Renato, o Pacífico, e sua quadrilha seleccionada — Marlene, Flávio, o Doutor, Arnaldo Figurante, Pedro Justiceiro, Adelaide Magrinha e Silvino Bitoque. Onde se fala também do gaulês Lucien Obelix, que teve fugaz e desastrosa aparição no bando, e de um assalto que iria espantar o mundo”. Assim se atirava num verão mal passado de 1979 Mário Zambujal à escrita daquele que seria o seu primeiro livro. “Livrinho”, insiste em chamar àquelas páginas escritas à mão em duas semanas de umas férias de família em que decidiu não pôr os pés na praia: A Crónica dos Bons Malandros. Julgou que escrevia para entreter uns amigos, para se entreter a si próprio, mas o “livrinho” rapidamente ganhou estatuto de incontornável, sobretudo quando se pensa a Lisboa de um tempo, também no percurso de vida de Mário Zambujal, jornalista que aí se fez escritor. Depois da rápida adaptação de Fernando Lopes ao cinema logo em 1984, os Bons Malandros regressam agora em formato televisivo, na série produzida pela Ukbar para a RTP com adaptação de Mário Botequilha (que Zambujal acompanhou) e realização de Jorge Paixão da Costa, Carlos Dante, Gonçalo Mourão. Uma versão distendida de uma crónica escrita a passo acelerado, à qual se juntaram uns quantos novos personagens secundários e uns quantos lugares. Como este em que viemos encontrar-nos com Mário Zambujal ao final de uma manhã ainda de 2020: o Pabe, exatamente à mesma mesa em que se reuniu a quadrilha para um almoço fino para pôr na conta de Lalique. Que uma Gulbenkian não se assalta de estômago vazio.

Esta adaptação da Crónica dos Bons Malandros a série televisiva acontece justamente nos 40 anos… … do livrinho.

Que o Mário diz ter escrito quase todo em duas semanas.

Sim, em 1979. Depois vim concluí-lo para Lisboa, onde já tinha muito mais coisas para fazer, mas pronto, lá o concluí, e saiu no princípio de ’80. Escrevi-o por duas razões. Primeiro porque não gosto muito de praia e estava num aldeamento turístico com a família, em Albufeira. Nas duas primeiras manhãs ainda fui para a praia mas depois… era muita areia, muito sol. Ao terceiro ou quarto dia disse: ‘Não. Fico em casa’. Fiquei em casa e tinha uma música no ouvido de uns amigos meus, porque eu escrevia muitas crónicas: ‘Pá, quando é que te resolves a escrever um livro?’.

O Urbano Tavares Rodrigues, certo?

O Urbano Tavares Rodrigues, o Abelaira, o Assis Pacheco… malta que trabalhava comigo no Diário de Lisboa. E então fui pensando, primeiro sem grande intenção, na história de uma quadrilha de terceira categoria que sonha com um assalto fantástico. Tive aquele pensamento inicial e automático que é o do assalto a um banco, mas depois pensei que aquilo não tinha originalidade nenhuma. Queria uma coisa que desse originalidade ao assalto e lembrei-me da Gulbenkian, que nunca tinha sido assaltada nem se espera que seja.

Roubar um conjunto de joias de René Lalique. É curiosa a coincidência de a Gulbenkian estar agora com uma exposição dedicada a Lalique [René Lalique e a Idade do Vidro – Arte e Indústria, até 1 de fevereiro]. Já foi ver?

Fui ver da outra vez.

 

Aquela do início dos anos 90?

Sim. Fui meticuloso na escolha do objeto a furtar, porque é uma coisa muito valiosa, muito bonita, e muito pequena — roubável. Não teria nexo irem lá roubar tapetes nem quadros. Tive também logo do princípio a ideia de que era uma quadrilha de tristes figuras que não usavam armas. Não eram uma quadrilha odiosa. No fundo, eles eram o resíduo dos bons costumes portugueses. Armas não. Veio daí a ideia das abelhas. Sou um tipo que escreve como vive, com alguma alegria e alguma vontade de paródia, sem esquecer os lados dramáticos da vida que aquele livrinho apesar de tudo contém, porque eles são uns desgraçados. Tiveram vidas infelizes, quase todos. Para não se dizer que os malandros saem só da miséria meti lá um tipo que era o Flávio, o Doutor, que era previsto portar-se bem e ter uma vida boa, mas também acontece algumas vezes estes tipos por vezes serem tentados para coisas que não devem. E, pronto, saiu aquele livrinho assim.

Insiste em chamar-lhe livrinho.

Quando o escrevi, era para divertir os meus amigos. Divertir ou tentar divertir ou cumprir um compromisso qualquer que tinha com o ‘qualquer dia escrevo aí alguma coisa’. Já escrevi mais 12 ou 13. Tenho outros que estão mais apurados, mais escritos com vontade de estarem bem escritos. Este foi muito trepidante, era o relato das atividades de uma quadrilha e foi escrito numa pedalada larga. O Cafuné [2014] é o meu melhor livro, não tenho a menor dúvida. Digo isto porque me deu um trabalho que me é ingrato, de alguma pesquisa.

Aborrece-o?

 Não sou capaz de fazer pesquisa. Agora tenho aqui uma história na cabeça que se passa no reinado de D. Luís, tenho mais ou menos a trama da história, mas não sei se não a vou adiar para a atualidade. Porque na atualidade vejo as coisas, sei as coisas, não preciso de perguntar se uma peça é um colete ou um casaco, não preciso de perguntar o que se veste, o que se come. Quando se mergulha na História tem de se saber o que eram as coisas. Não sei se um polícia se chamava polícia nessa altura e esta simples coisa… É esta preguiça, esta indolência perante o ato da pesquisa. Fiz um que teve agora uma nova edição, que é o Uma Noite Não São Dias…

… ia justamente trazê-lo para a conversa: esse projeta-nos para o futuro. 2044.

Um futuro que quando o escreveu, há um pouco mais de dez anos, antevia já muito daquilo que é o presente em que estamos. Em termos de caricatura. Tem alguma coisa de raciocínio da evolução da realidade que depois é caricaturado. Claro que as mulheres não vão mandar em tudo nem um Governo terá só ministras com os homens em secretários de Estado ou secretários das ministras. É evidentemente uma caricatura da evolução dos tempos. Mas é uma caricatura baseada numa ascensão real e atual das mulheres em todos os capítulos da vida. Sou do tempo em que não havia mulheres nas redações dos jornais, do tempo em que entrou a primeira na redação do Diário de Lisboa. Recentemente estive numa redação de televisão e olhei a ver se encontrava ainda algum velho conhecido, que já é difícil…

… ‘velhos conhecidos’ são uma espécie em vias de extinção nas redações.

Ou reformaram-se, que é a melhor hipótese, ou já foram. Mas então olho para a redação e vejo: só mulheres e um gajo. No outro dia fui a um cartório notarial e também eram só mulheres. Acho isto espantoso. Naquela altura 2044 parecia uma coisa ainda distante. Se o escrevesse hoje, [o ano] seria 2094 ou uma coisa assim. Mas já escrevi também sobre o passado. Para o Cafuné, senti que trabalhei, porque é uma história de ficção que é colocada num tempo real.

O das invasões francesas.

Um tempo real que parece ficcional: aqueles tremendos dias do Junot a entrar pela fronteira portuguesa com as tropas francesas e a fina flor de Portugal a ir de barco para o Brasil. E ficaram cá uns aparvalhados sem saber o que era isto. É um tempo extraordinário, na História do mundo não se deve ter dado uma coisa assim, e foi nesse tempo real que meti a ficção, a história de um desvairado que queria todas as mulheres do mundo, de um frade que deixou de ser frade… Deu-me prazer. Escrevo sempre com algum prazer porque, se não vejo nada nisto que me divirta, então também ninguém vai ver. Tenho a impressão, a convicção, de que quem escreve, escreve para ser lido. Nem que seja uma carta, um postal.

Nem que seja pelo próprio.

Há uma coisa que digo a jovens que vêm ter comigo a dizer que estão a começar a escrever: ‘Quando escreveres, lê em voz alta’. Porque escrita também tem alguma coisa de musical, quase como um toque de bateria. Não sou um tipo muito teimoso, muito menos pretensioso, mas tenho convicções fortes. Há livros excelentes que porventura deixei na página 27.

Que livros são esses?

A leitura tem que corresponder a uma de duas coisas: a aquisição de conhecimento ou o prazer da leitura. O prazer de leitura é aquele que nos agarra a um livro. Os livros que deixo na página 27 ou 34 são aqueles que não me agarraram, que deixaram de me dar prazer ou algum conhecimento que quisesse adquirir. Vou fazendo a minha seleção. À noite, antes de dormir, leio sempre, nem que sejam 10 páginas. Quando estou a escrever tiro livros diferentes, leio um bocadinho de cada, para não ser contagiado pelo estilo. Se estiver a ler só Saramago ou Lobo Antunes o ritmo de escrita vai-me ficando no ouvido e se calhar sem querer já estou a escrever naquele estilo. Não se pode escrever à fulano. Poder, pode, mas é o melhor em pior.

Mas que livros é que deixou na página 27? 

Eh pá, isso. Se calhar são vários. Tenho um tédio… para mim um livro de ficção tem que ter uma história e se se passam três páginas em que me estão a descrever o corrimão… Para mim um livro é uma história e tem que ter algum desembaraço no contar da história. Gosto de pormenores de natureza do retrato mental das pessoas, da psicologia. Raramente defino um protagonista. Deixo que ele se defina por aquilo que vai fazer. Depois há também esta coisa: escrever livros é um ato solitário, com uma tremenda cortina negra que nos veda de quem serão os leitores e como vão reagir. ‘Isto que estou a fazer será só para pessoas iguais a mim?’. Interrogo-me sobre essa figura plural chamada público.

Foi por isso, por não estar naquela altura preocupado com isso na altura, que escreveu a Crónica dos Bons Malandros, o seu primeiro livro, tão rápido?

Se hoje pegasse na história para escrever um livro de 300 páginas seria capaz. Mas perdia o ritmo todo. Um dos Malandros, um dos atores, disse no programa do Herman em que estivemos que foi reler o livro e que o releu numa manhã. É uma narrativa acelerada. Há sempre maneira de se encher as coisas, mas naquele tom quase de folhetim antigo dos jornais… Eu próprio não sou do tempo em que o Eça escrevia folhetins do Diário de Notícias como O Mistério da Estrada de Sintra ou outros. Porque eram publicados em rodapé de jornal eram também uma coisa acelerada. Era uma partezinha do jornal, a parte de baixo da página, portanto tinha que acontecer qualquer coisa, tinha que haver ação. Não estamos num tempo feliz da imprensa de papel.

Não estamos num tempo feliz para muitas outras coisas.

É um tempo que nem é de decadência dessa forma de comunicar, é que há outras formas de comunicar que vieram abafar essa. Eu jamais dispensarei a informação escrita na minha mão, jamais dispensarei o papelinho, mas compreendo que haja uma enorme diversidade de formas de comunicação e muito lestas, muito rápidas, muito em cima das coisas, que vieram tirar aos jornais o que eles tinham. Como a última notícia, isso acabou. Hoje é impossível dar-se a última notícia. ‘Morreu o Papa’, bom isso já se deu ontem. É engraçado como a descoberta de sistemas de comunicação tremendamente eficazes e tremendamente rápidos fez não só com que as notícias e a comunicação fossem muito mais rápidas, mas também com que todos tenhamos que andar mais depressa. Anda tudo afogueado, as pessoas não usufruem do tempo que parecia que esses novos métodos de comunicação poderiam permitir. Quando eu era jornalista, e isto foi apenas no século passado, não foi no outro, a malta tinha que ir às coisas, como você veio aqui ter comigo. Agora muitas coisas fazem-se na redação.

É quase impossível imaginar-se nos dias de hoje como seria esse tempo em que se fazia jornalismo sem Google.  

Exatamente. Tudo o que se passa em todo o mundo cai em cima da secretária de quem está a fazer um jornal, portanto há muito mais escolha. E muitas vezes a escolha vai para aquilo que é exótico, às vezes anedótico. Aqui há uns anos ia muito a escolas, corri o país todo nas escolas. Estavam lá os meus livros, os professores chamavam-me a escolas por esse país fora. E quase sempre os professores, normalmente professoras, de Português queixavam-se: ‘Eles leem pouco, leem pouco’. E eu dizia: “Minha senhora, sabe o que é que não mudou desde que eu tinha a idade deles até agora? O que não mudou foi que o dia tem 24 horas. No meu tempo não havia muita coisa para dividir o tempo’. Havia os livros que a gente tinha para ler, sobretudo os de heróis de capa e espada, havia a bola para jogar… não havia mais do que isso. Portanto, o dividendo do livro era 24 horas e continua a ser 24 horas. Mas o divisor cresceu das três ou quatro coisas que havia para as dezenas que há para dividir o tempo. Portanto não me admira nada que haja formas de comunicação mais agradáveis e atraentes do que ler para alguns deles.

Dizia que não é exatamente de decadência o estado da imprensa. É um estado de quê?

A palavra crise tem uma força e um significado, mas tem também um lado de esperança: dá um ar de superável. As crises podem ser superadas, podem ser passageiras. Se disser decadência parece que estamos num escorrega, que é sempre para baixo.

Havemos de ir mais para baixo, como diz, antes de começar a melhorar. Não lhe parece?

Ainda vai mais para baixo. De qualquer forma, a opinião, a crónica de jornal não é vencível. Há um estilo de jornal, há os livros de estilo, mas depois há a crónica, que é a individualização do jornalista ou de quem escreve a crónica. No Le Monde, que era o meu jornal-símbolo quando eu era jornalista, não havia cá notícias assinadas. Nem havia fotografias no jornal. Outra coisa que não havia quando eu era jornalista eram caracteres: 1500, 2500 caracteres, não sei o que é isso. Eram os linguados. E a malta, uns escreviam à mão, outros escreviam à máquina… Esse lado um bocadinho nostálgico que tenho do jornalismo antigo tem que ver com termos sempre saudades do tempo em que éramos novos. Tenho saudades daquilo que fazia, daquilo que me rodeava no tempo em que era novo, tenho saudades sobretudo da minha própria juventude e do mundo que me rodeava porque esse mundo que me rodeava foi desaparecendo. Foram desaparecendo muitos dos meus amigos, foram desaparecendo muitos dos estabelecimentos, das casas e dos costumes que havia. Sou do tempo em que ninguém se queixava de que não havia lugar para estacionar.

Do que é que tem mesmo mais saudades?

Tenho saudades de mim. Tenho saudades desse tipo que eu era. Não mudei muito sob o ponto de vista de encarar a vida e as coisas, a não ser essa novidade de estar a envelhecer tudo o que era novo no tempo em que eu era novo também. Não posso condenar o mundo porque evoluiu. Tenho que me culpar a mim que não acompanhei a evolução do mundo. No gosto e também na destreza e na sabedoria para o acompanhar. Eu não sei nada, em termos de online…

Continua a escrever os seus livros à mão?

Escrevo os meus livros à mão. Depois passo-os para uma alma caridosa que mos passa a computador para entregar.

Não consegue pensar em frente a um computador ou a uma máquina de escrever?

Disperso-me: ‘Onde é que está o H, tinha aqui o H!’. A mão, a mão leva-me por aí fora. Tenho muitas coisas em que tenho o mesmo gosto da adolescência, em que sou igual. Inclusivamente fumar. Comecei a fumar aos 13, para armar em homem, para as garinas olharem para mim e dizerem ‘eh pá, este gajo já é crescido’. Dos 13 aos 84 é muito tabaco a arder. Não me louvo por isso, nem recomendo a ninguém. Os meus filhos não fumam. A Isabel é autora de livros infanto-juvenis, tem muita coisa já, e o meu filho Rui é um caso especial: escreveu um livrinho pequeno, concorreu a um festival de ebooks em Nova Iorque, ganhou o primeiro prémio e disse: ‘Não escrevo mais nada’. Já foi há dez anos ou 15. Cortou, pronto.

Foi o sucesso inesperado da Crónica dos Bons Malandros que o fez continuar depois desse primeiro livro?

Eu acompanhava-me muito com o Dinis Machado, éramos muito amigos. Ele tinha escrito um livro também muito lisboeta, que foi um êxito: O Que Diz Molero. Eu tinha escrito também os Bons Malandros e ele dizia-me assim: ‘Ó Mário, o difícil é o segundo livro. Porque no primeiro livro um gajo derrama-se todo’. Ele falava mesmo assim: ‘Derrama-se todo. Depois o segundo…’ Então eu disse: ‘Eh pá, já me podias ter dito, vou já arrumar isso para chegar depressa ao terceiro’. Escrevi uma coisa chamada Histórias do Fim da Rua [1983], uma coisa muito mais caprichada em termos de uma construção original: são narradores sucessivos, capítulo tem um narrador que vai contando a história. E é a história de uma rua que vai ser demolida, de um casamento que também está a acabar e daquelas pessoas todas que têm que sair da rua. É uma história que tendo muitas coisas com piada, tem esse lado amargo das coisas que acabam, que chegam ao fim. As pessoas que estavam à espera de uma continuação da Crónica dos Bons Malandros acharam chato. Que já eram muitos problemas. E é, mantém-se, um dos meus melhores livros. Portanto, escrever um segundo livro foi um desafio para mim próprio: tinha que vencer essa barreira do segundo livro. Quando escrevi aquilo estava a milhas de pensar…

Refere-se aos Bons Malandros?

Sim. Achei que, pronto, saíam uns livros que uma malta conhecida ia comprar. Nunca pensei que tivesse uma quarta, quinta, sexta, décima, vigésima, trigésima edição. Já não sei quantas são, sei que da trigésima já passou. Muito menos imaginei que depois se tornasse teatro, musical, cinema e agora série. São coisas que estão além daquilo que qualquer autor — qualquer autor — pode imaginar, sobretudo alguém que está a sua primeira prosa para publicar.

O Mário acompanhou a adaptação para o argumento da série, que, com novas personagens e alguns acrescentos, o Mário Botequilha optou por estruturar dedicando um capítulo a cada personagem.

Há uns desenvolvimentos na biografia de cada personagem, tinha de ser. São coisas que talvez se pudessem deduzir no livro. Eles foram-me mandando sempre os guiões e eu gostei. Não estava preso à ideia de que a série tinha que ser exatamente o livro. O A Leste do Paraíso [filme de 1955 de Elia Kazan] é o último capítulo do livro [de John Steinbeck]. É a mesma quadrilha, é uma quadrilha de baixo nível, uma quadrilha deploravelmente desastrada à qual aparece o desafio para um objetivo fantástico. Isso tudo mantém-se.

Essa ideia de sonho — no caso deles o sonho de conseguirem executar um grande assalto que os tire do lugar onde estão — é muito uma ideia do tempo em que escreveu: um desejo de progresso, uma tentativa de chegar a um lugar melhor com que o país sonhava na viragem para a década de 1980, poucos anos depois da revolução. Os Bons Malandros, personagens, são os renegados.

É uma história dos anos 80. Agora na série recuperaram a música dos anos 80, cartazes, tudo. Houve um trabalho de investigação, de pesquisa e de produção para recriar o ambiente dos anos 80. Mas o desejo de ascender na vida pode habitar numa quadrilha ou em qualquer cidadão comum que não se resigne à sua situação real. Chegar a chefe da empresa, chegar a chefe do escritório, ser muito rico, comprar uma casa com piscina, há sempre uma quantidade imensa de situações que podem levar a pessoa que não tem deseje ter. Agora não tenho assim nada… Nunca fui um tipo ambicioso. Nunca concorri a cargo nenhum; encostaram-me à parede. Foram sempre desafios profissionais que fui tendo, nunca concorri a nada. Ocupei realmente excelentes, honrosos cargos, mas porque me disseram ‘tens que ir’ ou ‘anda cá, queres isto’. Se trabalhasse agora num jornal e fosse repórter talvez quisesse subir a redator, que era a categoria seguinte. Mas só por causa do ordenado. Há o redator, que é o tipo que está sentado na cadeira, e o repórter, que é o tipo que anda por aí, mas que ganha menos. A essência do jornalismo é o repórter, mas na tabela de ordenados dos sindicatos o repórter ficava no fim da lista.

Mas a sua intervenção nesta adaptação à série que está a ser transmitida na RTP1 foi mais do que ir lendo argumentos.

Sim, tivemos reuniões, falámos, falávamos muito. O Mário Botequilha é que trabalhou depois na adaptação para episódios, mas mandava-me sempre: ‘Mário, se houver alguma coisa’. Por mim estava tudo bestial. Talvez exagere, mas estarei a interferir no trabalho de outra pessoa só porque está a fazer uma coisa a partir do que eu fiz, ou a acrescentar uma coisa ao que eu fiz? A série é deles. A ideia minha ideia original, o livro, está lá tudo, mas…

… mas é outra coisa.

Como num filme o autor do filme é o autor. Mesmo que seja baseado noutra coisa, o realizador é o autor. De qualquer forma tem sempre que se adaptar. Se é uma coisa escrita, a não ser que alguém vá ler, que haja um narrador que a vai ler…

… a adaptação ao cinema do Fernando Lopes tinha um narrador.

Era eu [risos]. O Fernando Lopes disse-me: ‘Há um problema, uma situação jamais respondida no cinema: há uma história, mas quem é que a conta?’. Eu disse-lhe que era o realizador, o autor. Ele achava que tinha que haver um narrador. E, pronto, lá me fez fazer um papel muito atrapalhado. Bebíamos bastante. O Fernando bebia bastante, eu bebi bastante só até aí aos 50. Havia um tempo em que a sala comum das pessoas era o bar. Cada um tinha uma sala em casa e, para se juntarem, um bar. Ponto de encontro, local de copos — e de uísques. Agora o uísque já passou um bocadinho de moda, já não se bebem tantos uísques. Agora tenho bebido uns gins tónicos. Olhe, é daquelas coisas em que não estou desatualizado: beber uns copos. Mas tinha medo do gin. Porque uma vez deixei cair uma pinga de gin em cima do tampo de uma mesa e fez um buraco.

Mas dizia que bebiam muito uísque.

O Fernando não bebia mais do que eu, bebeu até mais tarde do que eu, que a certa altura comecei a travar. O uísque não é a mesma coisa bebido em casa ou no bar. No bar faz parte da companhia, a garrafa anda ali como interveniente na festa. Em casa… tenho uísque em casa, mas não lhe dá sabor. Agora também tenho de ter algumas defesas do canastro, que já está muito velho. Mas o Lopes… o Lopes era uma pessoa extraordinária. Em tudo. Era uma figura muito festiva, do convívio, das pessoas, expressava-se de uma forma exuberante, engraçada — ele tinha muita graça. Sinto falta dos meus amigos, da gente que era nova, cheia de vida. Olhe, lembrei-me agora de repente do Luís de Sttau Monteiro. Um fantasista fantástico, brilhante. Do meu querido Pacheco…

Assis Pacheco?

Sim. Vivia para os livros, para a literatura, para a escrita e para os petiscos. Vivíamos na mesma sala, na mesma redação do Diário de Lisboa.

Viviam?

Os nossos dias passavam-se lá. Lembro-me disto tudo como uns tempos muito bons e, não tendo agora essas companhias porque muitos deles já não estão cá, sinto que perdi em relação a esse tempo, que perdi muita coisa. Estou um bocado trôpego, mas já não é mau que não tenha diminuições cerebrais, tirando o facto de me esquecer dos nomes. De nomes, de títulos de livros.

 

Em que anda a trabalhar agora?

Naquela ideia de que falava no início? Eu ando a ver se não trabalho. Escrevo para aí uns contos, umas coisas. Aquilo a que se chama trabalhar pressupõe um livro e é o tal livro que tenho mais ou menos na cabeça mas que não sei em que época instale aquela ação. Se situar uma história num passado distante não posso falar sobre as minhas opiniões e mágoas sobre este presente. O narrador tem que ser outro, tem que estar a ver outras coisas, não este trecho da vida em que estamos. Um trecho vertiginosamente inovador em muitas coisas, em que um tipo da minha idade se pode sentir perdido e ultrapassado e divertido por se sentir fora de cena. Estou fora de cena.

E isso diverte-o?

Diverte-me porque mantenho a fidelidade àquilo de que comecei a gostar quando era criança e adolescente. Àquilo de que sempre gostei mantenho a minha fidelidade. Não me troco por máquinas, não me troco por coisa nenhuma. Sou aquele gajo exatamente que escrevia à mão há 80 anos quase, posso dizer, que aos 4 anos já rabiscava, o mesmo gajo que gosta de carapaus fritos, gosto de convívio, gosto de cavaquear. A forma como estamos aqui a conversar seria o tom de conversa das minhas conversas, das minhas tertúlias. Era assim que se conversava. O meu computador não o abro há dois meses. Temos uma incompatibilidade: toco-lhe e o gajo avaria-se. Está muito desumanizada a vida.