A hibernação da Justiça e da Democracia

A 3 de julho do ano já findo, o juiz Ivo Rosa convocou audiência para anunciar que, concluídas todas as diligências da instrução do processo da Operação Marquês, ser-lhe-ia impossível produzir em 10 dias despacho de arquivamento ou pronúncia dos 28 arguidos acusados pelo Ministério Público, incluindo-se nestes um ex-primeiro-ministro socialista.

A 3 de julho do ano já findo, o juiz Ivo Rosa convocou audiência para anunciar que, concluídas todas as diligências da instrução do processo da Operação Marquês, ser-lhe-ia impossível produzir em 10 dias despacho de arquivamento ou pronúncia dos 28 arguidos acusados pelo Ministério Público, incluindo-se nestes um ex-primeiro-ministro socialista.

Passados mais de seis meses, Ivo Rosa continua quedo e mudo, certamente ainda a produzir o tal despacho impossível de elaborar e redigir em 10 dias, em 100 dias, ou, como está visto, em 180 dias.

Neste caso, e como José Sócrates tem clamado, todos os prazos foram já em muito ultrapassados, de tal forma que estão volvidos mais de seis anos sobre o dia – 21 de outubro de 2014 – em que um primeiro-ministro de Portugal foi detido e, três dias depois, preso preventivamente.

Que a Justiça portuguesa não é célere, sempre se soube, mas que demore tanto tempo a decidir se, quando e por que razões leva a julgamento um ex-primeiro-ministro que esteve preso preventivamente 11 meses, nove dos quais num estabelecimento prisional e outros dois em prisão domiciliária, é incompreensível e inadmissível.

Como é inaceitável que aquele que foi considerado o maior banqueiro português e ao qual se imputa uma das maiores fraudes da história da banca, por mais complexos que sejam os processos, continue na mesma situação processual passados também mais de seis anos sobre a sua primeira detenção para interrogatório judicial.

Seis anos… como é possível?

Há variadíssimos outros exemplos em que a Justiça portuguesa parece ter emperrado num qualquer grão da engrenagem, chame-se complexidade do processo, falta de meios e/ou de recursos, simples incompetência ou incapacidade da máquina judiciária, que parece arrancar determinada e a todo o vapor e rapidamente perde o gás ou simplesmente entra em inexplicável hibernação.

Vem tudo o escrito a propósito do estado a que chegou a Justiça portuguesa numa altura em que a ‘trapalhada’ que envolve o representante português na Procuradoria Europeia atingiu proporções de insustentabilidade.

Insustentabilidade não apenas para Francisca Van Dunem, sobre quem a oposição tem assestado baterias, por ser a ministra da pasta e a cujo gabinete são óbvia e diretamente imputáveis as responsabilidades primeiras pelos ‘lapsos’ e ‘mentiras’ de que enferma o processo da escolha do representante português para a Procuradoria Europeia, mas também para António Costa.

Com efeito, e como escreveu José Manuel Fernandes no Observador, dão-se as ‘coincidências’ de o comité independente europeu ter classificado em primeiro lugar uma magistrada – Ana Carla Almeida – que esteve envolvida na investigação das ‘golas inflamáveis’ e que ordenou buscas ao gabinete do ministro Eduardo Cabrita e em segundo lugar um procurador – José Guerra – cujo irmão também procurador (João Guerra) era a quem o ministro da Justiça da altura (António Costa) dizia que era preciso ligar para evitar a iminente detenção de Paulo Pedroso e outro irmão (Carlos Guerra) o presidente do Instituto da Conservação da Natureza à época da polémica aprovação do Freeport. Ora, por intervenção do Estado português, a primeira acabou preterida pelo segundo.

Perante os ‘lapsos’ ou as ‘mentiras’ do processo, António Costa veio reiterar a confiança na ministra e dizer que «esse tema não tem a menor relevância política», considerando que o que existe, sim, é uma «campanha internacional contra Portugal» levada a cabo por Paulo Rangel e Poiares Maduro, acompanhados em matéria «sanitária» por Ricardo Batista Leite.

Campanha internacional? Contra Portugal? De Rangel, Poiares Maduro e Batista Leite?

Marcelo Rebelo de Sousa deixou claro no debate desta semana com André Ventura que fez o que podia em matéria de censura e responsabilização da ministra da Justiça no caso da nomeação do magistrado José Guerra para a Procuradoria Europeia.

«O meu discurso não podia ser mais duro», afirmou Marcelo, reiterando que o Presidente não tem poderes para demitir ministros sem ser por proposta do chefe do Governo e o primeiro-ministro veio reiterar a confiança em Francisca Van Dunem e, portanto, o chefe de Estado nada mais podia fazer.

Procuradora-geral adjunta ao tempo de Joana Marques Vidal e reputada magistrada do Ministério Público, Van Dunem tem carreira profissional notável e intocável.

Mas, politicamente, se a não recondução de Joana Marques Vidal, ainda que não podendo nem devendo ser-lhe assacada, a colocara sob reserva, este caso da intervenção no concurso internacional para a Procuradoria Europeia – sendo Portugal um dos três únicos países a intervir no processo para que a escolha recaísse sobre magistrado diferente do que concluiu o concurso internacional em primeiro lugar – sentencia-lhe o futuro. Independentemente do tempo que ainda possa ter pela frente como ministra.

As incorreções sobre o currículo do procurador José Guerra na nota enviada a Bruxelas, chamem-se-lhes ‘lapsos’ ou ‘mentiras’, não são admissíveis em concurso algum e muito menos na magistratura.

E a reação de António Costa faz recuperar todos aqueles fantasmas que pairam sobre a Justiça sempre que envolve socialistas, das teses das cabalas às das tentativas de controlo ou condicionamento.

E lá voltamos à hibernação. Aliás, como também da democracia, quando lhes é inconveniente ou atrapalha.