Hospitais preparam-se para o pior embate. Janeiro pode chegar aos 7000 doentes com covid-19 internados

Hospital de São João esperava ontem cinco doentes de Loures, já sem capacidade de resposta. Santa Maria abre novas camas. Sem uma travagem rápida de contágios, equipa da FCUL prevê 7200 internamentos por covid-19 no fim de janeiro, mil em UCI, acima da capacidade no SNS. 

Hospitais preparam-se para o pior embate. Janeiro pode chegar aos 7000 doentes com covid-19 internados

As campainhas estão todas a tocar e a orientação do Ministério da Saúde esta semana aos hospitais foi para elevarem níveis de contingência, reduzirem tudo o que não seja atividade urgente e articularem a rede para responderem a dias que a ministra da Saúde assumiu no início da semana que serão ‘difíceis’. Nos maiores hospitais do país, deverão manter-se apenas cirurgias oncológicas prioritárias, numa altura em que a pressão se sente com maior intensidade na região de Lisboa e Vale do Tejo e no Alentejo. No Norte, embora também a aumentar o número de infeções, não se está no pico que se viveu em novembro. E são agora os hospitais do Norte a dar a mão em Lisboa, depois de em novembro ter acontecido o movimento inverso, com doentes do Centro Hospitalar Tâmega e Sousa enviados para Sul.

O Hospital de São João preparava-se ontem ao fim do dia para receber os primeiros cinco doentes transferidos do Hospital Beatriz Ângelo, em Loures. «Estamos em nível II do plano de contingência, mas preparados para nos próximos dias elevar para o nível III», disse ao Nascer do SOL Fernando Araújo, presidente do conselho de administração do Centro Hospitalar de São João. Em Lisboa, o Santa Maria ultimava a abertura de novas camas de enfermaria e cuidados intensivos para doentes cm covid-19, não tendo ainda tido necessidade de transferir doentes.  Mas a afluência às urgências tem estado a aumentar e o nível de doentes internados é idêntico ao de outros anos, numa altura em que os hospitais têm de manter circuitos separados para doentes com suspeita de covid-19 e torna-se mais difícil acomodar o aumento da procura.

 

 

País confina, mas a pressão será imensa

Até onde irá é agora a grande preocupação. O país deverá entrar em confinamento nos próximos dias – a indicação do primeiro-ministro foi a de que as escolas devem manter-se abertas e, já ontem, o ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, anunciou o fecho do comércio não alimentar e da restauração por um ‘período contido’.

Para dia 12, está marcada uma reunião de peritos do Infarmed para «clarificação da situação epidemiológica», sendo esperada a definição de medidas no próprio dia, mas ontem o cenário complicava-se com um novo dia com mais de 10 mil casos, quando o primeiro-ministro deixou a expectativa de que pudesse estar a haver uma correção de dias anteriores. 

Com os recordes dos últimos dias, as projeções são muito dinâmicas – e auguram, mesmo com o confinamento, tempos muito difíceis na resposta nos hospitais que só um travão nos contágios poderá tornar comportáveis.

A estimativa do RT da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa já passou de 1,1 para mais de 1,22, ainda com tendência a acelerar, explicou ao Nascer do SOL Carlos Antunes, investigador da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que faz as projeções epidemiológicas da FCUL que são apresentadas ao Governo pelo epidemiologista Manuel Carmo Gomes. «Estamos a escalar a montanha e não há um pico à vista», explica. Estimavam no início da semana uma duplicação de casos a 13 dias – a previsão também feita pelo Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge – e esta sexta-feira a estimativa estava em dez dias a nível nacional – o que tinha acontecido a 9 de outubro -, 12 dias no Norte; 10 dias no Centro; 10 dias em Lisboa e Vale do Tejo; 9 dias Alentejo e 11 dias no Algarve. Com uma taxa de crescimento médio diário de casos de 7,1%, maior na região de Lisboa e no Alentejo, quando o cálculo no dia anterior era de 5,4%.

Com esta dinâmica, a equipa estima uma duplicação de internamentos em 38 dias e 90 dias no caso de doentes em unidades de cuidados intensivos, com a duplicação de óbitos em 17 dias, quando a média diária nos últimos cinco dias foi de 98,5 mortes associadas à covid-19.

Na próxima semana, o país poderá chegar a uma média de 12 300 a 13 mil contágios por dia, quando esta semana a estimativa da FCUL é que estejam a ocorrer 9 mil infeções diariamente. O número de doentes internados com covid-19 poderá chegar no final da próxima semana aos 3670, 620 em cuidados intensivos, muito próximo da atual capacidade instalada. Neste momento, estão ativadas no SNS mais de 1100 camas de cuidados intensivos, com uma ocupação de 85%, indicou durante a semana ao jornal i o médico José Artur Paiva, presidente do Colégio de Medicina Intensiva da Ordem dos Médicos, isto entre doentes com covid-19 e restantes casos. Doentes com covid-19 nos hospitais são agora de novo mais de 500. O médico admitiu que os próximos meses serão difíceis, provavelmente os mais complicados da pandemia, um «purgatório» antes do alívio esperado com a vacina. Sobre o confinamento e a necessidade de agir rapidamente para travar a transmissão, não havia dúvidas. «Em processos que são tendencialmente exponenciais, como as epidemias, a precocidade é, às vezes, mais importante que a perfeição. Atuar tarde é não ter resultados, habitualmente», alertou.

Carlos Antunes adiantou ao Nascer do SOL que, num cenário em que se mantém a atual dinâmica e não há um resultado rápido na travagem de contágios, no final de janeiro poderá colocar-se a necessidade de ter resposta de internamento para 7200 doentes com covid-19, cerca de mil em cuidados intensivos. Num modelo mais conservador, seriam 4500 doentes em enfermaria, 780 em UCI. Carlos Antunes sublinha que o histórico da pandemia mostra que as medidas tendem a demorar sete dias a ter efeito na desaceleração da epidemia e que o processo é lento. Se tal acontecer já na próxima semana, fruto de algum maior confinamento das pessoas esta semana mesmo antes das novas medidas anunciadas pelo Governo, poderá começar a perceber-se quando poderá ser atingido o pico de casos e consequentemente de internamentos e óbitos, que deverão continuar a aumentar ao longo das próximas semanas. Carlos Antunes alerta no entanto que o processo é lento: na primeira vaga, demorou 30 dias. «Há um efeito de saturação nas medidas».

 

Como chegámos aqui

Maior mobilidade e contactos a partir da segunda quinzena de dezembro e em particular no período das festas, subdiagnóstico –  porque havia menos laboratórios a funcionar em semanas de pontes e feriados e porque as pessoas também não procuraram cuidados.

O último relatório semanal do Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças, divulgado nesta sexta-feira, mostrava a amplitude da quebra: durante as últimas quatro semanas, o número de primeiros testes feitos por 100 mil habitantes no país caiu para quase metade do ritmo de testagem do pico de novembro. E a positividade subiu, tendo sido na última semana, só nos primeiros testes, de 12,5%.

Portugal terminou a última semana com 2373 testes por 100 mil habitanes, quando chegou a fazer mais de 5 mil. «Possivelmente foi isso que explicou a percepção também de um abrandamento da epidemia», diz Filipe Froes, pneumologista e coordenador do gabinete de crise da Ordem dos Médicos, sublinhando a necessidade de permanente monitorização e transmissão do risco à população. «O que é lamentável é que seja ao fim de dez meses de pandemia que estamos a encontrar o número recorde de casos. É paradoxal, porque neste momento sabemos quais são todas as medidas eficazes para travar os contágios. Tivemos dez meses para nos aperfeiçoarmos e não o conseguimos aproveitar».

O tempo frio, no entanto – e janeiro começou da pior maneira -, é a variável que faz da situação que se vive agora no país a tempestade perfeita e inédita na história recente. Na pandemia de gripe A, o primeiro caso de infeção com o H1N1 foi confirmado em Portugal a 4 de maio. No inverno, já os grupos de risco puderam ser vacinados – na covid-19, a campanha está agora no início. «É a primeira vez no nosso tempo que temos uma atividade pandémica no inverno, com frio e chuva e isso agrava a situação», conclui Filipe Froes.