Uma floresta de lapsos e de enganos…

Há um traço comum que aproxima irresistivelmente dois perfis na berlinda: Francisca Van Dunem e Eduardo Cabrita… 

O Governo anda em maré de azar. Como se não bastasse a espiral de vítimas do covid 19, que coloca o país no pelotão da frente entre os mais penalizados pela pandemia na Europa, sucedem-se os casos com implicações diversas, semeando perplexidades, além de deixarem ministros ‘em maus lençóis’. 

Mal esbatida a onda de choque resultante do homicídio de um ucraniano, detido nas instalações do SEF – sem que o titular da Administração Interna se achasse obrigado a retirar as consequências políticas por esse ato bárbaro – e logo estalou outra controvérsia, envolvendo a ministra da Justiça, a propósito da escolha de um procurador europeu. 

O ‘sururu’ à volta dessa nomeação, por ter sido contrária à preferência do comité independente de seleção, transformou-se numa novela que não abona a ministra e que evidencia o enviesamento dos critérios que preteriram dois outros candidatos ao lugar. 

Há um dispositivo cénico recorrente, neste como no anterior governo de minoria socialista, que consiste em classificar como ‘lapsos’ as mentiras flagrantes ou os erros de alguns atores. 

Os ‘lapsos’ agora invocados pela ministra Justiça, Francisca Van Dunem, quando confrontada com uma carta enviada ao Conselho Europeu, envolveram três falsos argumentos para justificar a escolha de José Guerra para procurador europeu, um magistrado cujo currículo não carecia de ser enfeitado com títulos que não possui. 

A ministra, em desespero de causa, e numa entrevista nervosa à RTP, tratou os ‘lapsos’ como ‘nota interna’, e responsabilizou os serviços do seu Ministério naquilo que Marcelo Rebelo de Sousa considerou, e bem, um «desleixo lamentável».

Há uma prática reincidente de tratar certos passos em falso como ‘fait -divers’ quando, por azar, caiem no domínio público.

O truque é velho, mas às vezes não resulta como álibi. Primeiro com pinças, depois abertamente, exigiram-se explicações à ministra, e, na oposição, tanto o eurodeputado Paulo Rangel como Rui Rio já defenderam a sua demissão, considerando insustentável a continuidade no cargo. 

Não ficaram sozinhos. Entre o PSD, o CDS ou o Chega, e mesmo o Bloco de Esquerda, as diferenças foram de pormenor. 

Como a culpa das falsidades da ‘nota interna’ foi atribuída aos ‘serviços’, havia que arranjar um ‘bode expiatório’ para salvação da ministra. 

O pior é que o visado, Miguel Romão, enquanto responsável pelo Direção-Geral da Política de Justiça, de onde saiu a ‘nota interna’, não se limitou a por o lugar à disposição. Resolveu, também, ‘pôr a boca no trombone’ e revelar, em comunicado, que a missiva fora «preparada na sequência de instruções recebidas e o seu conteúdo integral era do conhecimento do Gabinete da senhora ministra da Justiça».

Com este contributo de Romão, em jeito de despedida, a novela ganhou outros contornos, embora a ministra ache que tem todas as condições para prosseguir, refugiando-se no beneplácito de António Costa. Para uma juíza conselheira do Supremo, empossada em março de 2016, apesar de ser governante em funções – o que suscitou não poucas reservas – é uma história que lhe fica mal no currículo… 

As trapalhadas e as omissões deveriam ter sido suficientes para o primeiro ministro não hesitar em promover uma remodelação, substituindo as pedras mais desgastadas, em nome da dignidade do executivo e das boas regras de transparência. 

Por muito menos, no passado, se demitiram ou foram demitidos governantes. Mas não. António Costa apressou-se a reiterar a confiança política em Van Dunem e em Cabrita. E nenhum deles se sentiu desconfortável em continuar nos cargos.

Em Portugal há uma tendência para os governos caírem por dentro. E não é bonito de se ver. Ainda é pior se o contexto atrair repercussões internacionais.

Provavelmente, o primeiro ministro já o percebeu, e o Presidente da República também, mas ambos assinaram a seu tempo uma espécie de ‘pacto não escrito’, uma cumplicidade selada ao abrigo do ‘biombo’ da estabilidade.

Repare-se na frequência com que exorcizam quaisquer sinais de crise política, talvez por terem interiorizado que os portugueses lidam melhor com maus governos do que com incertezas.

Sem esse entendimento, vários ministros já teriam ficado pelo caminho. Mas a pandemia, desde que se anunciou, tem atuado também como um poderoso anestésico, agravando a paralisia das oposições. 

Há um traço comum, no entanto, que aproxima irresistivelmente dois perfis na berlinda: Francisca Van Dunem e Eduardo Cabrita reconhecem os ‘erros’, mas recusam demitir-se, como se a opinião pública não contasse.
Infelizmente, António Costa preferiu rodear-se de amigos indefetíveis que não lhe fazem sombra, mas que quando falham é com estrondo. 

O certo é que as sondagens parecem dar-lhe razão, enquanto a oposição não sai da cepa torta…