Purificação da companhia

É contra a natureza deixarmos de cuidar daqueles que amamos. Somos no sentido do outro, existimos justificados pela existência dos outros, e enfrentamos a morte, por mais anunciada e garantida, como a ocorrência do absurdo, porque ela representa a incapacidade do cuidado, o imprestável do amor, o imprestável da própria natureza

Por Valter Hugo Mãe

Escritor

No meu universo pessoal, o instante mais perturbador de todo este tempo da pandemia que se abateu sobre o mundo foi gerado pelo medo inicial, quando nos sentimos encurralados por essa incógnita de vontade matadora e a minha mãe me pediu que a deixasse sem mais notícias. Preferia adoecer sem saber mais nada. Dizia: já sei que vou morrer, deixa-me morrer sem saber de mais nada.

É contra a natureza deixarmos de cuidar daqueles que amamos. Somos no sentido do outro, existimos justificados pela existência dos outros, e enfrentamos a morte, por mais anunciada e garantida, como a ocorrência do absurdo, porque ela representa a incapacidade do cuidado, o imprestável do amor, o imprestável da própria natureza. Quando se distribuiu por todos a ameaça, feita sobretudo de uma fantasmagoria, uma invisibilidade que nos vulnerabilizava por impotência, o medo foi o que mais senti na ansiedade de quantos conheço e com quantos falei. O predador não se identificava e não havia como definir sua presa. Num primeiro instante, todos fomos servidos à mesa daquela morte. Estivemos propensos à morte, executámos pequenos gestos nostálgicos de despedida.

Para cuidar da minha mãe comecei por criar rigor nos meus afazeres. Reclusão absoluta, protecção preocupada nas escassas saídas, dias inteiros de conversas animadas e ideias bonitas para manter a alegria possível e recomeçar a esperança. Nesse tempo, sensibilizados com tudo, será para sempre memorável como se tornou fulcral traduzir certas ternuras adiadas, tácitas, que urgiram agora incapazes de se esconderem. Julgo que a pandemia ensinou quem quis aprender. Digo, ensinou acerca do quanto nos dirigimos para certa felicidade que não é mais do que a purificação da companhia. Talvez a felicidade seja a maturação da condição do encontro, isso de estarmos com os outros. A pandemia, acredito muito, ensinou quem quis aprender que todas as coisas que valem a pena radicam ou apontam para o encontro. A solidão não é absolutamente um objectivo.

Que bom que se perspectiva o futuro, que bom que há futuro, e que nos possamos agora afastar desse medo primeiro, desarmante, humilhante, que servirá apenas para comprovar que, como sabíamos muito bem, nos amamos e não sabemos acabar de nos amar. E que se lembrem os que sofreram ou sucumbiram com respeito e com o lamento para sempre, por terem sido roubados exactamente a isso: à fortuna de amarem e serem amados. Porque não é a vida que devemos imediatamente considerar como um absoluto, é a vida amável, aquela que se encontra em esplendor com os outros. Por essa devemos existir. Em todos os instantes nos devemos organizar para existirmos assim. Sem perder tempo, antes das pandemias, durante as pandemias, depois das pandemias.

(Valter Hugo Mãe escreve segundo o antigo AO)

Este texto faz parte do livro  Primeira Linha. O download gratuito do livro pode ser feito no website da Astellas: https://www.astellas.com/pt/ebook