O fantasma do catolicismo volta a assombrar a Irlanda

Uma investigação descobriu que uma rede de associações católicas foi responsável pela morte de mais de nove mil crianças.

Os relatos dos abusos da igreja Católica continuam, desde escândalos de abuso sexual por parte de padres pedófilos a adoções forçadas. Agora, uma investigação que associa a morte de nove mil crianças a uma rede de instituições religiosas, cujos resultados foram apresentados esta terça-feira, contribuiu para alimentar esta história de terror.

O Governo irlandês não tardou a responder a este escândalo, com o primeiro-ministro, Mícheál Martin, a pedir desculpa por estas mortes e a fazer um mea culpa. “Enquanto sociedade, fizemos isto a nós próprios, tratamos as mulheres excecionalmente mal; tratámos a crianças extremamente mal”, disse.

A investigação, que durava há cinco anos, revelou um chocante número de crianças – cujas mães eram solteiras ou tinham engravidado fora do casamento – mortas devido a maus tratos, ao longo do séc. XX. A maioria destas crianças foram adotadas ou viveram durante um certo período em orfanatos controlados por freiras católicas.

“Este foi um grande falhanço social e é uma grande vergonha termos roubado uma geração inteira de crianças que não receberam a educação que mereciam”, disse o ex-primeiro-ministro irlandês, Leo Varadkar, no canal televisivo RTÉ.

O escândalo começou a ser alvo de atenção em 2014, quando uma historiadora local, Catherine Corless, descobriu uma vala comum onde se encontravam os restos mortais de cerca de 800 crianças. A historiadora descobriu os registos de óbito e percebeu que pertenciam a residentes de uma organização católica na cidade de Tuam que acolhia mães solteiras, o Lar de Mães e Bebés do Bom Socorro.

Entre 1922 e 1998, cerca de nove mil crianças morreram em 18 instituições desta organização, o que representa o dobro da taxa de mortalidade infantil da época. Um documento revelado pelo jornal Sunday Independent, cita que as causas da morte são sobretudo negligência, desnutrição e doenças variadas. De acordo com a Reuters, “estas crianças eram desprezadas por serem fruto de relações que a igreja considerava impróprias, vistas como uma mancha na imagem da Irlanda, “uma nação católica devota”.

Segundo documentos do Governo, dezenas de milhares de mulheres viram os seus filhos nascer no Lar de Mães e Bebés do Bom Socorro, onde a probabilidade de a criança morrer à nascença era cinco vezes superior do que aquelas que nasciam das relações ditas “normais”.

 

Um país em mudança

Apesar do contexto sinistro desta investigação, esta descoberta está a ser considerada como um momento histórico na Irlanda, uma vez que pode ajudar uma geração mais nova e liberal a compreender e contestar a histórica influência da Igreja Católica.

“Esta investigação vai revelar, particularmente a uma nova geração, o que a Irlanda fazia às mulheres que tinha a audácia de amar fora do seu casamento e que tinham de ‘entregar’ os seus filhos”, escreveu a antiga primeira-ministra, Joan Burton, no Irish Independent. “Enquanto sociedade, teremos a oportunidade de nos perguntar se esta forma de brutalidade será tolerada por muito mais tempo”.

Na Irlanda, onde o catolicismo historicamente é uma questão de identidade, face ao legado de colonização pelo império britânico, maioritariamente protestante, a religião está enraizada na cultura e na política, estando na base de muitas escolhas políticas dos irlandeses.

Contudo, depois de serem revelados dezenas de milhares de casos de abuso sexual cometidos por membros da igreja – que levaram inclusive o Papa Francisco a pedir desculpas, em 2018 – a sociedade irlandesa tem se distanciado desta tradição conservadora. Por exemplo, em 2018, um referendo aprovou a legalização do aborto, com 66% dos votos, apesar da feroz oposição da igreja.