A urgência do pensar em tempos de pandemónio (Em resposta a António Bagão Félix)

A afirmação de que estamos a entrar numa cultura de morte é um soundbyte e pretende evocar fantasmas e medos que não coexistem com a liberdade individual das democracias liberais.

«A morte é a libertação total:
a morte é quando a gente pode, afinal,  
estar deitado de sapatos…».

Mario Quintana

 

por João Emanuel Diogo
Investigador em Filosofia

Sempre nos habituámos a ouvir em Bagão Félix alguma tranquilidade na expressão das suas posições. Por isso é com grande espanto que encontramos na opinião veiculada no Sol, intitulada A urgência da eutanásia em tempo de pandemia um tom que não lhe reconhecíamos e que ultrapassa largamente a defesa de ideias. Não serve este meu texto para recuperar o seu tom, mas fazer um pedido geral, quando se trata de pensar: sempre que os argumentos são pessoais estamos a afastar-nos do cerne da questão. Poderia eu, ‘eutanasiasta’, dizer que Bagão Félix seria um ‘dolorista’, mas nem uma coisa nem outra traduzem o pensamento que queremos transmitir. Irei, pois, passar por cima de qualificações como despudor, afronta, desatino, e similares que em nada acrescentam nem a opinião dos leitores nem o pensamento comum.

O ponto central da questão é, para Bagão Félix, a pressa na aprovação da legislação que regulará a morte medicamente assistida. Junta vários argumentos que tentarão sublinhar que há de facto uma pressa: 1) a de que há outros projetos no Parlamento que ficam para trás (ainda que não indique quais); 2) que não se deve concluir a lei em tempos de pandemia; 3) que o Estado não deve dirigir recursos e competências para a execução da lei quando são necessários noutros lados; 4) que há uma cultura da morte que é alargada com esta lei; 5) que é uma violação da ética pública aprovar uma lei não sufragada nos programas eleitorais; 6) que é antidemocrático rejeitar um pedido de referendo; 7) que não se deve ignorar ou secundarizar o CNECV ou as ordens profissionais; 8) que há uma rampa deslizante nesta legislação; 9) que há uma banalização da ideia de morte que tem origem ideológicas; 10) que esta legislação ajuda à fragmentação ontológica; 11) que proporciona uma deterioração da relação médico-doente; 12) que a vida é um bem supremo; 13) que inclui a ideia de que ser velho ou doente é um inconveniente; 14) que decide por todos nós quando a vida deixa de ter valor como vida; 15) que a sua aprovação é a derrota do imperativo categórico da ética republicana; 16) que prioriza a morte em vez dos cuidados paliativos. São assim, 16 pontos que em poucas linhas Bagão Félix consegue sublinhar.

Verifica-se nesta listagem de argumentos que, contra a sua própria vontade expressa (2.º parágrafo), Bagão Félix passa da ideia de ‘pressa’ à luta contra a própria lei (luta ideológica, infelizmente, demonstrada nos vários qualificativos usados).

Seria entediante para o leitor que pudesse refutar cada um dos pontos, dado que em muitos deles sobra em militância o que lhe falta em argumentação racional, por isso irei concentrar-me numa ideia básica que alberga todas as outras: a ideia de que uma legislação sobre a eutanásia é uma afirmação de uma cultura de morte.

A afirmação de que estamos a entrar numa cultura de morte é um soundbyte e pretende evocar fantasmas e medos que não coexistem com a liberdade individual das democracias liberais. Por isso sejamos claros: a lei que sairá do parlamento é uma lei que afirma a liberdade individual sobre a forma da sua morte em situações muito restritas (aliás, a discussão da morte medicamente assistida ou do suicídio a pedido é, em Portugal, tremendamente conservador não estando em cima da mesa, por exemplo, as discussões sobre sofrimento psicológico incapacitantes, ou as diretivas antecipadas de vontade em casos de demências). Essas situações não se prendem com o facto de ser velho ou não. Prendem-se com a situação de saúde concreta, em que alguém em situação terminal pede ajuda para não sofrer. Esse pedido está, nesta lei, cheio de garantias de não se tratar de: a) um pedido espúrio que pode ser revertido com uma estratégia de, por exemplo, controlo da dor, ou de apoio psico-emocional; b) um pedido influenciado por outros (mesmo que seja só perceção do doente de que deve agir desta ou daquela maneira).

Essas garantias permitem assim atingir dois objetivos: que o doente decide de uma forma livre e informada e que a sociedade tudo fez para que essa decisão seja livre e informada. Ao agir assim, a sociedade aceita que a decisão do doente, em determinadas circunstâncias delimitadas na lei, tem prevalência sobre a opinião de terceiros. Ao contrário do que Bagão Félix infere esta lei dá maior valor à decisão individual, cria uma relação médico-doente de uma dimensão verdadeiramente existencial (ao contrário da relação circunstancial que as decisões médicas normais adquirem), e baseia-se numa verdadeira ética humanista que é acolhida até por teólogos cristãos como foi o caso de Hans Küng para dar só um exemplo (não se trata por isso de uma escolha ideológica: veja-se que há partidos de esquerda contra a lei e partidos de direita que apoiam a lei).

O processo desta lei foi longo, demasiado longo a meu ver. O Parlamento português, neste como noutros casos, trabalha lentamente. Mas ao contrário do que se afirma deu mais possibilidade de afirmação das ideias de pessoas contrárias à lei do que o contrário. Pode verificar-se quer no grupo de trabalho existente quer em outros anteriores que a grande maioria dos convidados a depor foram contrários à lei, sobretudo por que estes se estabelecem em associações que – por si só – ganham possibilidades de afirmação das suas ideias. Assim também no espaço público. Bagão Félix, bem como muitos outros com as mesmas ideias, têm uma ligação com os média que lhes permite facilmente brandir a pena contra esta e outras leis. Independentemente de o fazerem racional e tranquilamente ou não.

A discussão sobre esta lei e outras tem a ganhar com a discussão pública. Mas não pode dispensar seriedade e inteligência.