Biblioteca Pessoal. O pintor no seu ninho

Lucian Freud pintava lentamente, o que era uma tortura para os seus modelos. Mas não para o crítico Martin Gayford, que descreveu o processo num livro soberbo.

Posar para Lucian Freud podia ser um suplício. Não que o aclamado pintor fosse um sádico que torturava física ou psicologicamente os seus modelos, mas pelas longas horas de imobilidade, por vezes com uma luz intensa apontada à cara. Para a primeira de dezenas de sessões, o crítico de arte Martin Gayford levou um livro sobre Van Gogh, pensando que poderia matar o tempo enquanto Freud fazia o seu retrato. Opintor avisou-o que ler não era permitido.

Nascido em 1922 em Berlim, Lucian Freud, neto de Sigmund, era considerado, no início do século XXI, o maior pintor figurativo, ou talvez simplesmente o maior pintor vivo. Os seus quadros, como o monumental Benefits Supervisor Sleeping, de 1995, que representa uma mulher madura, obesa e completamente nua a dormir num sofá, deram-lhe uma enorme notoriedade e prestígio. Ganhou muito dinheiro, mas perdeu ainda mais a apostar em corridas de cavalos e em certa fase da vida teve de ser um amigo milionário, um Rotschild, a pagar-lhe as dívidas, sob a promessa de nunca mais jogar.

Se os Gregos tendiam a idealizar a figura humana, Freud, que se afirmava antiplatónico, representava-a implacavelmente, com os defeitos bem à vista. Oseu amigo, e também pintor, Francis Bacon dizia que somos feitos de carne (meat); os nus de Freud fazem-nos pensar em carne crua.

Uma foto de 2005 muitas vezes reproduzida mostra-o no seu ateliê a trabalhar, de tronco nu, com um olhar quase alienado que lembra vagamente um bicho a caçar. Essa espécie de tensão nervosa que a lente captou contrastava com a lentidão com que pintava – e que podia ser exasperante para os seus modelos.

Mas não para Martin Gayford, que enquanto posava, embora não pudesse ler, podia conversar com o artista, ver como trabalhava, observar o estúdio. Para nossa sorte, registou tudo num diário que publicou em 2010 sob o título Man with a Blue Scarf – On Sitting for a Portrait by Lucian Freud (Thames &Hudson).
Nestas páginas, Gayford transporta-nos para o espaço sagrado do ateliê do artista: «O efeito do interior salpicado de tinta é muito parecido com um certo tipo de arte abstrata, ou – mudando a metáfora – um ninho que LF lentamente, quase acidentalmente, construiu através das rotinas do seu trabalho». A metáfora do ninho é especialmente adequada, pois Freud tinha o hábito de acumular montes de trapos nos recantos, como um hamster na gaiola.

Gayford descreveu a experiência de posar para Freud como «algo entre a meditação transcendental e uma ida ao barbeiro» (e também descreve, talvez não por acaso, uma ida ao barbeiro a pedido do artista, para cortar o que o cabelo crescera em duas semanas).

Man with a Blue Scarf é ligeiro e profundo, preciso e evocativo. O romancista Julian Barnes considerou-o (julgo que sem exagero) um dos melhores livros sobre arte que alguma vez leu.O texto da contracapa apresenta-o como «a história contada por dentro da sensação de posar para um artista notável, e de ser transformado numa obra de arte». Julgo que é mais do que isso: Freud transformou o seu modelo numa obra de arte; mas Gayford, enquanto posava, não ficou de braços cruzados e deixou-nos também um fabuloso retrato de um dos maiores artistas do nosso tempo.